Notas sobre a aula magna de Ariano Suassuna
Revirando o baú das postagens do
Letras in.verso e re.verso surpreendi-me com uma coincidência de datas. Há
exatos dois anos, isto é, em agosto de 2009, eu havia escrito “Ariano Suassuna,
os encontros que não tive” (aqui). À época o escritor de O auto da compadecida estava
em Mossoró para a edição da Feira do Livro. Naquele ano eu estava cursando no
meio de um turbilhão de coisas o meu mestrado em Letras e não pude vê-lo, mesmo
sendo a Feira do Livro de Mossoró um evento do qual sempre participei
assiduamente desde sua primeira edição. O fato é que agora, nesse ano, o
encontro aconteceu. À distância de alguns metros, mas eu estava lá para
ouvi-lo. Eu que tenho a impressão de que somente eu ainda não tinha assistido
uma das suas famosas aulas magna.
Primeiro devo contar da minha
vizinha de plateia. Que não mediu elogios para dizer que o Agosto da Alegria –
evento maior no qual se situa a abertura do seminário feita hoje por Ariano –
estava muito organizado. Disse isso sem conhecimento de causa, porque foram
tantos os desencontros de informações que se eu não usasse aquilo que o
brasileiro mais tem de seu – a astúcia – não teria estado a tão poucos metros
do mestre. Foi alardeado por todos os veículos que a aula magna seria no
centenário Teatro Alberto Maranhão. Ambiente muito mais adequado devido a
acústica. Mas de última hora o evento foi transferido para o largo do teatro. Ao
ar livre. Perigando de uma chuva dessas repentinas que tem assolado desde o mês
de junho a capital potiguar. Mas, para felicidade do povo e da organização do
evento, o improviso do meio da rua deu certo. O céu nem sequer lacrimejou e a
acústica, pelo menos de onde eu estava, estava perfeita.
Depois da falha de mudança de
última hora de local teve o incidente da fita rosa. A organização representada
por uma intransigente senhora de cabelo quase rosa cismou de que só entraria
para o lado de dentro do gradeado, onde estavam as cadeiras, quem tivesse no
pulso uma fita rosa daquelas de acesso distribuída antecipadamente. Eu e o
pequeno grupo que já às 17h se fazia presente reclamou e muito. Não havia sido divulgado
nada de fita rosa. E onde que pegava essa fita? A fita teria sido entregue às
escolas. O evento era especialmente para alunos pré-vestibulandos que terão esse
ano O santo e a porca como obra requisitada ao vestibular da federal. Enfim, tanta
conversa fiada. E nessa hora foi a vez de colocar em prática outra
característica bastante forte do brasileiro: a de não respeitar regras e
imposições. Do fundo do cercado um grupo começou a entrar e no fim, poucos
minutos depois, já todos que perguntavam e de nada sabiam de fita rosa estavam
sentados à espera de Ariano Suassuna. A minha vizinha de platéia não viu nada
disso. Já chegou com o largo do teatro quase lotado e, por sorte dela, no meu
lado resistia uma cadeira vazia e ela aproveitou-se e sentou. Realmente estava,
aos olhos dela, tudo muito organizado.
Segundo, devo contar da fala de
Ariano Suassuna. O escritor chegou ao local armado para sua fala vestindo a sua já habitual roupa branca. "Primeiro, quero agradecer por vocês terem vindo. Uma noite de terça-feira agradável como essa a pessoa sair de casa para ver um velho de 84 anos... Eu não viria. Só venho porque sou eu." Devo me concentrar não no itinerário que ele compôs para
falar em poucos minutos de como foi concebido o enredo de O santo e a porca. Mas
no comentário feito pelo escritor no princípio de sua fala que desmantela a
infeliz atitude da organização de privatizar uma fala que seria pública e
desmantela ainda a infeliz chamada de abertura que bradava “O governo do estado
tem a honra de convidar o mestre Ariano Suassuna para apresentar sua aula magna”.
Coisa mais ou menos do tipo foi o que a locutora anunciou. A frase primeira de
Ariano foi essa. “Primeiro quero dizer que estou surpreso. Fui convidado para
uma aula magna e quando chego aqui encontro um comício.” Poucos devem ter
entendido a pitada de humor crítico que só Ariano Suassuna naquele reduto
possuía. O comentário dele pode ter sido somente uma admiração ao extenso
público que lotava o largo do Teatro Alberto Maranhão, mas pode ter sido, e prefiro
acreditar nessa versão, uma crítica ao tom de espetacularização política que
tinha aquele “O governo do estado tem a honra”.
No mais, nesse encontro tudo
valeu a pena: a espera – a aula anunciada para as 18h acabou começando já às
19h –, a audácia de entrar sem fita rosa e, sobretudo, a atitude de ouvir
Ariano, que no alto dos seus 84 anos, mantém uma vivacidade tão forte, só
comparada ao seu “namoro de 64 anos com sua esposa”, sobre quem disse ter o
maior prazer (de babar) em quando ela lhe chama de “Meu velho, eu gosto tanto
de você”. Além de tudo, a lucidez de extrair daquilo que melhor temos a
legitimidade de sua voz e entender os ditos de escritos como os de Aristóteles, Bergson,
Freud – para ficar nos nomes citados pelo escritor. Ariano, já tantas vezes
crente declarado no poder da arte popular nordestina como legítima arte erudita
mostrou-se, sobretudo brasileiro, e crente declarado de seu amor pelo que o
povo brasileiro é: “único capaz de rir de sua própria desgraça”. E “não há tirania
que resista a duas gargalhadas em torno dela”.
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