Miacontear - O novo padre

Tela de Georges Seurat

“Obediência de negro de que vale se é sempre falsa? Esse era o suspiro do colono.”

“O novo padre” é o que melhor retoma o tema do racismo e outros resquícios da colonização impetrados na cultura de Moçambique. Seu enredo está situado no período colonial, o tempo suspenso da terra de ninguém e da terra de colonizadores portugueses como o engenheiro Ludmilo Gomes, a personagem central do conto. 

Pela pose que ocupa, “cheio de feição”, “aspectudo, todo enfeitado de si”, Ludmilo Gomes incorpora os traços do dominador, do que, numa terra sem-lei, vive às suas próprias leis. Preso no seu catolicismo de obrigações, o encontramos adentrar na capelinha de um vilarejo.

No decorrer do trajeto, atenção seja dada para uma “aglomeração de camponeses que rodeia  o canhão que ali se posicionara, desde que começara a guerra”. Na igrejinha só os brancos. Vemos o engenheiro se aproximar do altar para tomar a comunhão. Na falta de hóstias, fala com o novo padre e se põe em confissão. 

O momento da confissão é o ponto máximo da narrativa de “O novo padre”, porque é nesse intervalo de fala que Ludmilo destila seus atos: se envolve com as negras da vila e num desses envolvimentos cometera um homicídio, havia matado o irmão de uma delas. A surpresa se dá no final, no momento em que o português pede ao padre a absolvição dos pecados:

“- Quantas orações devo rezar, padre?
 - Nenhuma.
 - O senhor me absolve? Deus me perdoa?
 - Quem o absolve não é Deus, meu filho.
 - Como não é Deus?
 - Deus está cansado de ouvir. O demónio, foi o demónio quem o escutou. E de lá, do meio do inferno, é o demónio quem está o abençoando.
 [...] Foi então que viu o padre sair do confessionário. Fosse tontura que lhe dava, mas o coração, de um golpe, se confrangeu: o missionário era preto, retintamente negro.” (p.92-93)

O que não se pode falar aqui é de constrangimento diante da revelação. O sorriso ensaiado no rosto de Ludmilo quando dá  pela presença de um padre negro encaminha para um sentimento de confronto de raças ou um sentimento de abjeção da parte dele em se ajoelhar diante de um negro para confessar seus atos de covardia para os da mesma raça - “Se o silêncio é sempre um engano: o falso repetir do nada em nenhum lugar. E em África tudo é sempre outra coisa.” 

Ligações a esta post
>>> Acompanhe aqui a leitura dos contos de O fio das missangas.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #607

Boletim Letras 360º #597

Han Kang, o romance como arte da deambulação

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #596