O espírito dos meus pais continua a subir na chuva, de Patricio Pron
Por Pedro
Fernandes
“Enquanto eu
tentava deixar para trás as fotografias que tinha acabado de ver, compreendi
pela primeira vez que todos nós, filhos dos jovens da década de 1970, teríamos
que desvendar o passado de nossos pais como se fôssemos detetives, e que nossas
descobertas seriam parecidas demais com um romance policial que preferiríamos
nunca ter comprado, mas também percebi que não havia forma de contar a história
deles à maneira do gênero policial ou, para ser mais preciso, que contá-la
dessa maneira seria trair suas intenções e suas lutas, já que narrar a história
deles como se fosse uma história de detetive apenas contribuiria para ratificar
a existência de um sistema de gêneros, ou seja, de uma convenção, e que isso
seria trair seus esforços, que tentaram desafiar essas convenções, tanto as
convenções sociais como seus pálidos reflexos na literatura.”
Essa
reflexão do narrador de Patricio Pron é importantíssima para a compreensão de O
espírito dos meus pais continua a subir na chuva. Pelo menos por três
razões. Trata-se de uma interpretação construída a partir da descoberta de um
conjunto de materiais organizados pelo pai acerca da morte de Alberto José
Burdisso, um pacato homem que é brutalmente assassinado numa cidade do interior
da Argentina onde toda a gente ainda confia plenamente na bondade do outro. Sua
força é metaficcional porque a narrativa que nos conta esse narrador funciona
como um exercício de compreensão sobre a decisão do narrador de reencontrar a
família quando o pai respira os instantes finais de vida e o impacto lento e
profundo causado por essa decisão; quer dizer, essa é uma ocasião em que o
narrador procura resposta para dúvidas sobre as quais ele próprio desconhece
mas que se infiltra por entre sua relação com o pai feita de hiatos e silêncios.
O levantamento
construído pelo pai do narrador é um rico dossiê que revela um itinerário
detetivesco formado à margem dos interesses lentos e possivelmente displicentes
da polícia e aproxima de outra situação compreendida aqui como a verdadeira
motivação pessoal para o périplo: o desaparecimento da irmã de Alberto, Alicia Burdisso,
nos anos da ditadura militar. As relações íntimas entre o pai e a jovem só estão
acessíveis pelo laço de companheirismo e luta pela liberdade que terá habitado
entre dois. Com essa memória em carne viva, mas que por uma trauma que narrador
precisa superar vive adormecida, de um passado imoral e delinquente do Estado
resulta aos envolvidos mais próximos não encontrar a mesma força de um crime
comum; é um gatilho que reanima toda sorte de angústia e imprecisão que
constitui a memória do desaparecido. É, não chegar a uma solução, que se constitui
da descoberta e da punição dos envolvidos, reativar o mesmo grau de
irresponsabilidade continuamente exercido pelo poder que ousa esquecer os que
estão sob seus pés. Toda morte impune é reativação da falibilidade do Estado enquanto
ordem civilizatória.
Nesse sentido,
e falamos agora sobre a primeira razão da reflexão do narrador de Patricio Pron
colocada na abertura desse texto, notamos a constatação sobre a memória como um
traço de intersecção entre os tempos; que estes, passado, presente e futuro, encontram-se
marcados por fatores de correlação e por displicência nossa sempre nos escapa
na falsa sensação de que as coisas do passado estão definitivamente sepultadas,
restando-nos tão somente um contínuo presente ou futuro. Não é uma missão o que
esse narrador descobre; é um sentido para as motivações que o levaram,
casualmente, a deixar a vida de mendicância pela Alemanha para se deparar com reencontros
para os quais se viu mais incapaz de reinventá-los do que imaginava. A descoberta
da memória como elo ou força motriz para a realidade oportuniza ao narrador saber
sobre um próprio sentido para a existência, que esta não é feita exclusivamente
das nossas próprias lutas individuais.
Ao
compreender que para o pai a morte de Alberto é uma porta para outro
acontecimento tão ou mais cruel que esse, o narrador reconhece, através de um
encontro de tempos, passado-presente, seu futuro. Há aqui toda a simbologia do
filho como continuador da memória do pai. Mas há também uma dimensão ética
dessa relação: que todo indivíduo responde pelas situações suas e alheias. A
única possibilidade dessa descoberta é dada no intervalo de purgação da morte;
enquanto o pai agoniza, o filho rumina sobre o papel que lhe cabe na ausência
do grande outro. Isto é, o contato com o passado do pai, permite ao filho compreender
sobre ele mesmo – o mais fino dos exercícios de alteridade, cada vez mais incomuns
na era dos apartheids, o que tem levado os sujeitos a padecerem mais e
mais da grande falta que carrega desde os tempos imemoriais.
Note o leitor
que esse rapaz, o narrador, apesar de jovem, carrega consigo certo fardo que o
impede de viver plenamente e o obriga à dependência dos psicotrópicos; a reabilitação
de seu eixo individual a partir do retrabalho com a alteridade, isso realizado
no contato inquisitorial e fascinado com as investigações do pai, é a garantia
de descobrir uma matéria e um caminho para um romance: o livro não-escrito pelo
pai e, pelo visto, mostrado só em tentativas pelo filho. A arte de narrar
perece no âmbito de todas as crises do nosso tempo. O espírito dos meus pais
continua a subir na chuva, cujos movimentos estão alinhados ao desse
narrador que retoma um episódio de sua vida pessoal, é, assim, a possibilidade
de romance. Refaz-se aqui uma tendência que tenho observado como recorrência no
romanesco contemporâneo e sobre a qual difundi em outros textos como este e em
minha tese de doutoramento. O inusitado é que, Patricio Pron formula (como os
demais) uma possibilidade de romance, que é já o próprio romance, como quisesse
atestar, pelas múltiplas maneiras de atuação do romanesco, que o trabalho de
repositório, a caixa de máquinas do texto, contém toda a força do objeto final,
mesmo que este seja invisível.
O romance
porvir não é assim produto de uma crise de memória, nem esta é derivada de um
tempo de esvaziamentos, afastamentos e desligamentos com o passado. O romance
porvir é um objeto capaz de responder pelos valores inerentes de uma geração que
ousou enfrentar modelos do establishment e os cercos do poder. É o que está
enunciado ainda no excerto disposto na abertura deste texto. O que o narrador,
um cético para a tradição romanesca sobre a memória da ditadura na literatura
latino-americana (o leitor pode constatar isso na maneira como ignora o
trabalho de Ernesto Sábato), coloca, é que qualquer obra interessada em
constituir parte de um tempo de luta, ruptura e liberdade não pode recorrer a uma
forma já-estabelecida. Encontramos aqui quase um discurso ético sobre a responsabilidade
do escritor pela memória alheia: tocá-lo ao seu bel-prazer não é uma tarefa das
mais honestas. Esta é certamente a conclusão que encontra para o seu fracasso e
do seu pai como romancista; se não for muito delírio, é mesmo possível associar
esse fracasso ao do próprio tempo ao qual se refere – afinal qual é mesmo o
estatuto da barbárie se não isso? E aqui, revela-se o segundo ponto dos três anunciados
acima.
O espírito
dos meus pais continua a subir na chuva é, portanto, uma reflexão sobre seu
próprio itinerário como romance. Situado num tempo em suspensão, o tempo de
toda perda e todo luto, este romance só pode ser manifestado enquanto suspensão,
porvir. É este um romance em maturação, um fio frágil que tenta unir
duas diferentes gerações, se reparamos noutra das reflexões do narrador: “Naquela
manhã, minha irmã me contou que uma vez encontrou uma frase sublinhada em um
livro que meu pai tinha deixado na casa dela. Minha irmã me mostrou o livro. A
frase era: ‘Combati o bom combate até o fim, terminei minha carreira: mantive a
fé. Era o versículo sete do capítulo quarto da segunda epístola de Paulo a
Timóteo. Ao lê-la, fiquei pensando que meu pai tinha sublinhado essa frase para
que lhe servisse de inspiração e consolo, talvez também de epitáfio; e me
ocorreu que, se eu soubesse quem eu era, se a névoa criada pelos remetidos se
dissipasse por um momento para que eu pudesse saber quem eu era, também
gostaria de ter esse epitáfio, mas depois pensei que eu não tinha realmente
lutado, e que ninguém da minha geração tinha lutado; algo ou alguém já tinha
nos infligido uma derrota, e nós enchíamos a cara ou tomávamos remédios ou
desperdiçávamos nosso tempo de mil e uma maneiras tentando chegar depressa a um
final que talvez fosse indigno, mas com certeza seria libertador.” O impasse verificado,
então é entre um passado pesado demais para ser esquecido e um presente impossível
silenciá-lo. Os silenciamentos são alternativas de segregação, danação, e, por
sua vez, constituem possibilidades de retorno à barbárie. E aqui está a
terceira razão encontrada no excerto original recuperado na abertura dessas
notas. Escrever é de alguma maneira tentar estabelecer as relações entre essas
distâncias entre tempos que talvez não estejam tão descompostos assim.
Este é um
romance que se refere aos apagamentos da memória e à necessidade de não nos perdermos
totalmente de seus fantasmas; por mais perturbadores que sejam, perdê-los,
ainda que aparentemente isso seja uma inevitabilidade, pode significar
definitivamente nossa morte: “nós também somos pessoas que ainda vão chegar”,
diz a citação a Marcelo Cohen na última parte do romance. A conclusão poderá
parecer óbvia, mas sua lição, em tempos de negação, é profunda. É um alerta.
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