Miacontear - O mendigo Sexta-Feira jogando no Mundial


Pobres, José Pádua


“O que eu invejo, doutor, é quando o jogador cai no chão e se enrola e rebola a exibir bem alto as suas queixas. A dor dele faz parar o mundo. Um mundo cheio de dores verdadeiras pára perante a dor falsa de um futebolista. As minhas mágoas que são tantas e tão verdadeiras e nenhum árbitro manda parar a vida ara me atender, reboladinho que estou por dentro, rasteirado que fui pelos outros.” (p.82).

É da literatura contemporânea o gosto pela história daqueles que estão à margem - histórica, social. Mais ainda das literaturas africanas, todas elas, tomadas pelo excessivo e brutal processo de exclusão do qual padeceu seu povo pelas extensas investidas coloniais. Tenho observado pelos sujeitos miacoutianos de O fio das missangas essa característica de figuras descentradas ou em constante vias de formação ou ainda sujeitos de fronteira. 

Tais figuras nos contos do livro em leitura são representantes de uma variada gama de tipos sociais, tradicionalmente vítimas de processos discriminatórios e excludentes. Sujeitos deslocados espacialmente, consequência palpável do processo de colonização e de marginalização social. Sujeitos “guetificados”, descontínuos, “mal entendidos, quase sempre”. 

Agora, mais do que oferecer espaço para esses sujeitos, a literatura de Mia Couto em O fio das missangas busca ressuscitar do silêncio a voz deles. Existe uma dimensão simbólica nisso que está para além da de apenas colocar tais sujeitos como protagonistas. Dá-lhe o poder da palavra é a única possibilidade de deixá-los ser. Dá-lhe o poder da palavra é resgatar do silenciamento, propor um reordenamento das fronteiras subjetivas, sociais e, sobretudo, das fronteiras linguísticas.

“O mendigo Sexta-Feira jogando no Mundial” segue a risca essas observações até agora postuladas como segue a risca outros contos do livro. Os lugares de trânsito de Sexta-Feira se resumem a uma esquina da Avenida Direita, de frente para o Dubai Shopping e ao hospital. No primeiro espaço sua relação se dá com outros mendigos e com as telas dos televisores do Dubai Shopping. No segundo espaço sua relação se dá com o médico de campanha que, pelo visto, o atende constantemente, devido aos espancamentos que sofre na rua. “Estar doente é minha única maneira de provar que estou vivo. É por isso que frequento o hospital, vezes e vezes, a exibir minhas maleitas. Só nesses momentos, doutor, eu sou atendido. Mal atendido, quase sempre. Mas nessa infinita fila de espera, me vem a ilusão de me avizinhar do mundo. Os doentes são minha família, o hospital é o meu tecto e o senhor é o meu pai, pai de todos os meus pais.” (p.81). 

O conto é um relato de uma dessas consultas de Sexta-Feira. No caso havia sido espancado pela polícia a mando do dono da loja de televisores. Estão aí representados os dois signos do poder e da opressão sobre os sujeitos da margem - o poder da polícia e o dos que têm dinheiro. A dor de Sexta-Feira não é, entretanto, a dor do espancamento. É a dor do mundo, a dor da alma, a dor da existência. Só suprimida ou aliviada pela atenção e pela oportunidade de expressão. A dor de Sexta-Feira é silenciosa. Interna, invisível. É a dor de uma ausência de si. Dor que se alivia na dor alheia - quando cai um jogador; dor que se alivia pela imaginação que o suspende às margens do real sensível. 

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>>> Acompanhe aqui a leitura dos contos de O fio das missangas.


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