Miacontear - Entrada no céu
Cena da adaptação para o cinema de O auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. |
Usando de um tom anedótico e confessional “Entrada no céu” conto traduz as inquietações de um negro africano diante de algumas 'formulações' católicas caras ao entendimento daqueles que mantém um contato com o simbólico por outra via que não o total abstracionismo da religião ocidental. Digo isso, mas boa parte das inquietações dessa personagem são inquietações, inclusive, de muitos que nasceram num berço cristão. As imagens do paraíso celeste com sua enorme placa “Welcome to paradise!” ou grande tribunal a averiguar todos os fatos da existência das pessoas são as que muitos de nós, quando crianças, projetamos.
O choque, portanto, que aqui se constata está para além das culturas, está na própria relação do homem com o simbólico e o abstracionismo da natureza - duas questões caras ao pensamento humano desde as formulações de Platão entre mundo sensível e mundo das ideias. Bem ao modo platonino, o protagonista “Entrada no céu” tende a assimilar tais 'formulações' católicas pelas vias de sua própria história terrena: é citando o amor vivido-sofrido por uma tal de Margarida que buscará respostas para questionamentos sobre a sua salvação e sobre os santos, por exemplo.
E o senhor se ria. Que santo não podia. E porquê? Porque sano, dizia o senhor; é uma pessoa boa.
- E eu não sou bom?
- Mas santo é uma pessoa especial, mais único que ninguém.
- E eu, Padre, sou especialmente único.
Que eu não entendia: um santo é uma pessoa que abdica da Vida. No meu caso, Padre, a Vida é que tinha abdicado de mim. Sim, agora entendo: os santos são santificados pela morte. Enquanto eu, eu é que santifiquei a vida.
Agora, estou no fim. Um santo começa quando acaba. Eu nunca comecei. Mas não é desta vez que a morte em mim se estreia. O meu coração se apagou foi nessa longínqua noite do baile. Entrei no salão do Ferroviário, sim. Mas fiquei fora do coração da mulata Margarida. A moça deu deferimento de me olhar à distância, fria e ausente. Branca entre os brancos.” (p.79).
É este outro conto de O fio das missangas em que os veios da colonização estão presentes. Trata-se de um sujeito que está à beira das fronteiras entre a sua cultura e a cultura do colonizador, entre o seu plano real de dor, sofrimento, e o simbólico, entre o sagrado e o profano. É todo um sujeito em estranhamento.
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>>> Acompanhe aqui a leitura dos contos de O fio das missangas.
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