Miacontear - Os olhos dos mortos

Por Pedro Fernandes



Em Os olhos dos mortos estamos diante de uma protagonista mulher que também ocupa o estatuto de narrador. Esta bem poderia ser colocada, dado o forte parentesco, junto àquela mulher que assassina o marido em “Meia culpa, meia própria culpa”; à maneira dela, esta também está para confessar o assassinato do marido. Se aquela comete o homicídio por um sentimento de posse, esta comete, entretanto, para se libertar do domínio masculino.

“Durante anos, porém, os passos de meu marido ecoaram como a mais sombria ameaça. Eu queria fechar a porta, mas era por pânico. Meu homem chegava do bar, mais sequioso do que quando fora. Cumpria o fel de seu querer: me vergastava com socos e chutes. No final, quem chorava era ele para que eu sentisse pena de suas mágoas. Eu era culpada por suas culpas. Com o tempo, já não me custavam as dores. Somos feitos assim de espaçadas costelas, entremeados de vãos e entrâncias para que o coração seja exposto e ferível.” (p.70).

Dos dramas femininos colocados em O fio das missangas este parece ser o que mais salta das páginas do livro. Acompanhamos incólumes a violência física e a degradação psicológica de uma mulher que não ocupa no rol das existência mais do que 'esquecimento' - “Sem pertença nem presença” - como a fotografia presa na parede da sala de sua casa. “Desfocada”. 

Venâncio, o marido em questão, é quem ocupa a dimensão de “dono”, “patrão” da casa e da mulher. Aliás, é por Venâncio dar contas dos estilhaços desse retrato de casamento, que se dá o desenrolar o trama. Essa encontro merecerá, da parte dele uma atitude de “correção” da esposa com mais uma sessão de espancamento. 

Esvaindo-se em sangue e achando que supostamente sofria um aborto, a mulher é arrastada, por sua própria força, num itinerário que mais parece uma via crucis, até o hospital. “Desmaiada, me espreitaram os dentros: gravidez não havia. Mais uma vez era falsa esperança. Esse vazio de mim, essa poeira de fonte seca, o não poder dar descendência a Venâncio, isso doía mais que perder um filho.”

O estágio de submissão dessa mulher é tamanho que, além de se sentir culpada pela própria violência de que padece, ainda tem a esperança de recompensar Venâncio com um filho. Talvez ela padeça, iludida ou sequestrada de sua própria vontade, daquele sentimento de profunda esperança de que as coisas um dia poderão mudar. E se não mudam por bem, hão de mudar por mal. 

Seu estágio de libertação desse domínio, diferentemente do que ocorre em “Meia culpa, meia própria culpa”, será conseguido. Menos mal, dizemos os que não suportam o sofrimento vindo da opressão alheia. Depois de assassinar o marido, quando na volta do hospital, não teremos uma mulher receosa diante da atitude que cometeu, tampouco agarrada às lembranças do marido.

“Se errei, foi Deus que pecou em mim. Eu semeei, sim, mas para decepar. Se recolhi os grãos, foi para os deitar no moinho. Há quem chame isto de amor. Eu chamo a cruel dança do tempo. Nessa dança, quem bate o tambor é a mão da morte.” (p.70). 

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>>> Acompanhe aqui a leitura dos contos de O fio das missangas.

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