Miacontear - A infinita fiandeira

Por Pedro Fernandes



Se narrativa muito aprendeu com a poesia, não temos dúvidas desse “intercâmbio”. O maior aprendizado me parece ter sido não o manuseio com as palavras, mas a própria construção formal - estrutural - do texto. Também não sei precisar se isso foi um aprendizado com a poesia ou um aperfeiçoamento das próprias técnicas de narrar. Ideia para se estudar, é claro. 

O que tenho observado nos textos de escritores contemporâneos, como Mia Couto, um modo peculiar dos seus narradores na condução e desfecho da narrativa. O movimento empreendido pelo fio narrativo se ajusta e muito ao movimento do fio da poesia. Trata-se de um movimento cíclico. Na narrativa, como tenho dito várias vezes, um círculo que é reta. Acho que já falei disso aqui noutra postagem e, se não me falta a memória, quando discorria acerca da narrativa de José Saramago, obra de onde me encontrei com essa suspeita.

O fato dessa observação é que dou conta dessa questão em “A infinita fiandeira”; conto, aliás, que é, do meu ponto de vista, um dos mais bem elaborados quanto à sua estrutura. A leitura me faz novamente sentir ou ter a impressão da circularidade do movimento narrativo. Um movimento que prolonga a narrativa ao um estágio infinito ou pelo menos engendra-se um movimento de contínua rotação do seu material.

Espécie de fábula, conto popular ou anedota “A infinita fiandeira” é a história de 'aranha-artista'. Seu trabalho é tecer uma infinidade de teias cujo sentido está em não ter sentido - já que “Todo o bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatais funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador.”

Como todo artista, não será diferente no mundo das aranhas, a ideia de valor para seu trabalho é sempre questionada. Afinal, fiar e somente fiar e não ser útil de que serve? Pois bem, incompreendida, a aranha será tida como problemática para os aracnídeos da sua prole. Se o mal é da idade, a aranha-artista ainda é virgem, que arranje-se um marido.

Mas, depois do casório novamente foge à regra do que seria comum a seu mundo. Ao invés de devorar o macho depois das núpcias, ela o leva a conhecer seu mundo de teias e até incentiva-o a escolher uma para si. O fato é que, depois de tudo e da preocupação de todos, a aranha-artista será condenada pelo deus dos bichos a ser enviada para outro mundo. 

O outro mundo é o nosso. O dos humanos. Assim que aqui chega é interpelada do que faz. A resposta “- Faço arte” soa como que retrógrada no mundo de cá. Estamos agora situados num plano cujo sentido da arte foi perdido e os últimos que se deram a fazer disso um ofício foram transmutados geneticamente em bichos. Aranhas, decerto.

Além do plano formal desse conto, devo reparar é nesse jogo metafórico que o autor engendra em torno da perda ou degradação do valor da arte enquanto bem simbólico de “repaginação do mundo”. A incongruência, parece nos dizer Mia Couto, não reside apenas nessa constatação de uma degradação, mas a degradação é nascida na constatação de que o artista é sempre um incompreendido no mundo em que vive. 

Ligações a esta post
>>> Acompanhe aqui a leitura dos contos de O fio das missangas.



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