Manuel António Pina
“Toda a poesia, e provavelmente toda a arte, toda a
filosofia, todas as religiões, são, acho eu, movidas pelas perguntas
fundamentais: ‘De onde vimos?’ ‘Para onde vamos?’ E, já agora, também pelo
‘Quem somos?’. Isto é, pelo medo. ‘Riste porque tens medo’, escreve Bataille.
Poder-se-ia acrescentar-se: escreves, ou tens fé, porque tens medo. Acho que é
Borges quem diz que os temas de toda a literatura se podem reduzir a dois, o
amor e a morte. O amor, através do sexo, está ligado ao abismo da origem do
ser; a morte ao do seu desaparecimento. É natural que os homens, perante tais abismos, se
interroguem e, porque não encontram respostas, tenham medo. Talvez por isso a
generalidade das religiões inclua uma cosmogonia e, simultaneamente, concebam
um destino: para responder ao medo.”
A fala é de Manuel António Pina numa entrevista para o
periódico português Visão. Antecede
esta conversa a data de recepção do Prêmio Camões. E finda com outros termos
que gostaria de destacar antes de conhecermos mais alguns detalhes sobre sua
vida e obra – dois elementos totalmente desconhecidos para este lado do
Atlântico, principalmente se nos determos em sua obra. Perguntado a que o tempo
hoje é propício – se à crônica ou à poesia – o poeta responde “Estes são (todos
são) ‘tempos de indigência’ e, como Drummond diria, de cronistas. Nenhum tempo
é apropriado à poesia.”
Sim, ainda mais quando o tempo em que se vive é o da
constante balburdia, da pressa, da indigência, da submissão do individuo ao
capital e logo sua redução ao estado de coisa – situações químicas que
empobrecem o solo da força poética. Num contexto desses, escrever poesia é um
desafio de subornar a complexidade do real. E o contato com alguns versos de
Manuel António Pina apontam para essa possibilidade – digo alguns versos porque
o que me chega vem através de bits.
Esta observação minha se agarra ao mesmo teor do anunciado por
Floriano Martins da Revista Agulha
numa intervenção para o anúncio de
uma conversa com o poeta português: intimidade e estética são, na visão de
Martins dois conceitos que nos permitem a criação de um estilo de vida, uma
maneira singular de estar no mundo, que é isso o que podemos chamar de estado
do ser poeta. Observação dada pelo próprio poeta no adiantamento da prosa com
Martins – sem isto talvez o melhor seja pedir “para o mundo que eu quero
descer” – “Às vezes, como num sonho, / vejo formas como um rosto / e pergunto:
‘De quem é este rosto?’ / E ainda: ‘Quem pergunta isto?’” – cita Martins os
versos de Pina.
A obra do poeta português é vasta. A pergunta feita pela
visão e sobre a qual comentamos na abertura deste texto já assinala que além da
poesia, Manuel António Pina se ateve à crônica. Escreveu ainda livros para
crianças, peças de teatro e novelas, todos gêneros pelos quais transitou com
muita dedicação e interesse de ser um trabalho significativo para sua
literatura. Ainda em contato com as observações de Floriano Marins, “temos em
Manuel António Pina um poeta que trafega, com notável senso de humor, por entre
as vértebras do tempo, captando as singularidades da sociedade portuguesa,
acentuando-lhe pequenos vícios, provocando prodígios existenciais e discretos
entusiasmos.”
Uma lista de títulos essenciais para conhecimento de algumas
dessas singularidades da obra de Pina deve receber títulos como Ainda não é o fim nem o princípio do mundo
calma é apenas um pouco tarde, O país das pessoas de pernas para o ar, Aquele que quer morrer, Nenhum
sítio, Um sítio onde pousar a cabeça,
Nenhuma
palavra e nenhuma lembrança, A
guerra do tabuleiro de xadrez, Cuidados
intensivos – os de poesia. Para Pedro Mexia, “Pina joga com oposições
binárias para, ao modo oriental, as superar: temos aquilo que nos falta, a
divindade existe e inexiste, o tempo passado está contido no tempo futuro, o
esquecimento é uma forma de sabedoria, o nada nunca é completamente nada,
regressamos sempre ao sítio de onde não saímos, o lado de fora tem um lado de
fora, o movimento é igual à imobilidade, o infinito desfaz-se em imagens
finitas. Isto sem o mínimo desvario new
age, apenas como tentativa de descrever o ‘mundo’ através de palavras que
estão conscientes do seu estatuto precário, alegórico.”
Mesmo na poesia, Pina não ‘esconde’ a própria vida. Talvez
fruto de sua vivência como cronista. Em A
Lâmpada do Quarto? A Criança? e Nenhum
Sítio é o passado que lhe vem sob vozes que se infiltram nos poemas e os
tornam materiais intranquilos, “mais cépticos quanto à própria natureza daquilo
que se viveu e perdeu” – acentua Pedro Mexia. “Em que medida são ‘nossas’ as
nossas vidas? Quem somos ‘nós’? Sonhamos ou somos sonhados? Escrevemos ou somos
escritos? Quem faz as perguntas que perguntamos? O que é a memória e o que é a
fantasia? Existe um mundo do lado de fora da cabeça? Não conseguimos responder
a isto, e o único consolo é regressarmos a casa, mesmo que não saibamos bem o
que é um ‘regresso’ e uma ‘casa’.”
Na prosa Os piratas,
Os papeis de K e O inventão – novelas os dois primeiros e teatro o último. Jornalista,
Manuel António Pina atuou na área por mais de 40 anos; daí sua afeição ao
gênero crônica. Um percurso natural. Um trânsito entre o jornalismo e a
literatura. O primeiro, O anacronista
e Porto modo de dizer.
Há ainda fôlego? A seguir, leiam um catálogo em que reunimos 16 poemas do poeta.
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