Alejandra Pizarnik, a poesia, pelo humor e o sangue
Por Mercedes Roffe
A condessa sangrenta constitui o epíteto que Valentine Penrose acrescenta
ao nome de Erzébet Báthory referente real da protagonista do poema em prosa e fonte para o texto de Alejandra Pizarnik. Igual a Valentine, a poeta
argentina se concentra “na beleza convulsiva da personagem” para dar luz a este
“texto marginal”.
Marginal e sinistramente belo é o maldito de quatro séculos referendado por esta história e, melhor ainda que ela própria – os crimes de Erzébet – a trama
de relações intertextuais que se tece através de uma luxuosa galeria de relembranças
e citações que vão de Sade a Rimbaud, de Baudelaire, Artaud, Gombrowicz e,
indiretamente, George Bataille.
Autora das antologias A árvore de
Diana, Os trabalhos e as noites, Extração da pedra da loucura e O inferno musical para nomear só os mais
importantes, Alejandra Pizarnik faz de A condessa
sangrenta um Aleph onde se concentram o que serão os tópicos básicos de sua
obra poética. Mas se de Aleph ou de espelhos se trata, cabe deter-se em que
tipo de espelho se constitui este conjunto de notas ao livro de Penrose.
A obra de Alejandra é um corpus
bem articulado de espectros noturnos, medos infantis, meninas perdidas no
bosque, damas de lilás e vermelho cantando a canção da morte. Ecos, silêncios,
imagens vigorosas seguidas de sombras cadavéricas. Trata-se de um mundo poético
no qual o eu e a enunciação – que se desdobra num eu e num tu que não é uma
segunda pessoa mas outro rosto de si próprio – teme e sucumbe.
Frente a esse eu temoroso, frágil a ponto de fragmentar-se em outros
mil, que rege (ou é regido por) o discurso das antologias, se ergue, como dizíamos,
o curioso espelho de A condessa sangrenta:
a visão desse mundo feito de pedaços, de restos, surge no livro que comentamos,
como se apresentada à luz do dia. Então os fantasmas se diluem, as formas
tornam-se precisas, o monstro se torna inofensivo, mais ainda assim, grotesco. O temor
torna-se silêncio. A escrita varia; ergue-se o império do cinismo. Técnica, recurso:
a ironia.
A perversão sexual da condessa Báthory, o “reino subterrâneo” de seu castelo
de Csejthe, as torturas empregadas contra as donzelas, os retratos das velhas
serviçais, a condenação da dama de branco (ou de vermelho: o sangue era tanto que capaz
de enaltecer a beleza do vestuário até convertê-la nas noturnas cerimônias em
toga sacerdotal ou sacrificial), todo esse mundo é vertido no texto como uma
imagem revertida, uma caricatura quase de marcas próprias, injusta menção do que
havia de constituir um idioleto fechado, restrito, recorrente até a conjuração
e o exorcismo.
O recurso através do qual se alcança este efeito de cinismo,
amoralidade é a ironia. A ironia surge em A
condessa sangrenta do choque violento entre vocábulos de carga conotativa
diferente, muitas vezes contrária. Não esquecemos que a conotação não é se não
o produto de uma educação, de um determinismo cultural.
Assim, Alejandra provoca esse fenômeno que poderia ser definido como
uma descarga elétrica, como um curto-circuito entre palavras que se repelem, se
atraem, se anulam, se retroalimentam (por acaso a poesia é outra coisa?).
Evidentemente, o desconcerto surge dessa aproximação de vocábulos que
remete a níveis distintos de significação. Se falávamos da conotação como
determinismo cultural, unir a lágrima à luxúria, o azeite de jasmim ao odor do
sangue, a homossexualidade aos prazeres sádicos, não pode deixar de nos arrancar
esse sorriso sob o império do qual parece haver sido produzido o texto.
Com estas palavras poderia resumir-se então a poética, o lugar do qual
foram tecidos os enunciados de A condessa
sangrenta, poética e contrapoética em si mesmos do resto da produção da
autora.
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