Os conselhos de escrita de Clarice Lispector




Difícil é o ato de escrever. Algo que é recorrente entre todos que lidem, bem ou mal com a palavra escrita, aparece singularizado pela voz narrativa de Manual de pintura e caligrafia, de José Saramago. Também Clarice Lispector singularizou em várias circunstâncias da sua obra, os dilemas com o escrever. Diríamos mesmo que toda sua obra está às voltas com o alcance do centro nevrálgico do dizer por escrito. Mesmo o seu trabalho considerado mais próximo do tipo corriqueiro de organização de um enredo, A hora da estrela, um romance que tematiza igualmente os dilemas de um escritor em desenvolver a história desta jovem vinda da periferia do Brasil para sofrer e virar estrela no olho do furacão.

Benedito Nunes descreveu a escrita da autora de obras excepcionais da nossa literatura como um movimento incessante de vai-e-vem; “escrever é, para Clarice Lispector, submissão a um processo que ela não conduz e pelo qual é conduzida”. De fato. Mas, repousa qualquer coisa de racional numa escrita que se manifesta como pura irrupção ou pura força irregular. Isto é, o caos é uma força proposital, organizativa do discurso e o que faz a escritora é conseguir segui-lo.

Na exposição patente no Museu da Língua Portuguesa em 2007, entre a quantidade significativa de materiais sobre Clarice Lispector (fotografias, papéis manuscritos, datiloscritos, primeiras edições de sua obra etc.) uma página chamava atenção e pode servir de esclarecimento para a circunstância do entendimento sobre esse princípio organizacional do movimento escritural da escritora. Trata-se de um roteiro, organizado pela escritora de como devia se conduzir para a revisão de um seus livros. 

Este material expõe primeiramente a consciência rigorosa que dedicou ao trabalho de escrever, conhecido por todo aquele que se encontrar como leitor diante de uma obra de Clarice; sim, não faltam os que, desafiados pelo tratamento diferenciado com a linguagem, não deixem de negar as qualidades criativas e apelem mesmo por uma negação da sua obra. O exemplo mais notável está na crítica na época da chegada do primeiro romance, justamente Perto do coração selvagem, lido então ora com desinteresse, ora sem as palavras capazes de materializar o que se lia, ora ainda com a recusa de sempre; dentre todos, o mais sensato, porque dotado de uma elegância inimitável na nossa crítica, parece ter sido Antonio Candido, ainda que não tenha deixado de levantar o olho para os puros embates de linguagem exercidos na poética de Clarice.

Polêmicas à parte. Vão-se os críticos, ficam as obras. 

A folha com as recomendações de revisão ressaltam uma escritora ciosa do seu ofício e revela conselhos úteis também para nós, aventureiros com a palavra escrita ou àqueles que engalfinhados no complexo ego  muitas vezes são enganados pela própria vista. O desprendimento do imediato e o convívio com este outro que reprova é uma qualidade indispensável. Assim, vamos ouvir Clarice, para quem todo final de um trabalho significava o apagamento de uma vida e o nascimento de outro, o renascimento.

1. Ler tirando o excesso de adjetivos brilhantes (“isso e isso”, “isso e isso”)
2. Ler tirando as palavras “modernas”, as soluções modernas, os modismos, as repetições que indicam processos fáceis.
3. Ler tirando tudo o que sinceramente não parecer bem, parecer quebrar.
4. Se puder em alguns casos, deixar os fatos indicativos, tirando a ideia.
5. Ler tirando o que parece com Joana. 
6. Retirar paradoxos, pensamentos complicado-fácil. 
7. Tirar certo grandioso.
8. Modificar frases excessivamente ricas.
9. O presente ou imperfeito são os únicos tempos nobres do romance.
10. Tirar o excesso do primeiro capítulo: o vento rodava sobre si mesmo... Fazer mais limpo, mais gideano. 
11. Tirar os brinquedos, o tom falsamente inocente. Tudo é sério. 
12. Tirar os “como” da analogia: a coisa é o que ela simboliza. Não bonita como um lírio, mas ela era um lírio.
13. Fazer diálogos vazios e vulgares entre as pessoas.
14. Não fazer dos outros personagens uns bonecos: surgem pouco mas dão impressão de vida e profundeza.
15. Apagar os vestígios de qualquer processo ― não explorar senão de modo diferente os achados.
16. Espalhar mais ela-não-sabia-que-pensava
17. Espalhar a vulgaridade dela em várias cenas.

Manuscrito, escreveu outras três recomendações:

― Fazer de adjetivos substantivos quando se souber a qualidade.
18. Esqueci o lado ridículo de Daniel mesmo no [ ].
19. Rever todos os diálogos e dar-lhe o tom certo. 


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