Miacontear - A saia almarrotada

Por Pedro Fernandes



Como em O cesto, o narrador de A saia almarrotada é uma mulher. Como as outras mulheres de que já falamos desse O fio das missangas, o drama dessa sem nome - Que o meu nome tinha tombado nesse poço escuro em que minha se afundara - se acentua quando ganha de presente uma saia de rodar. O presente é simbólico e representa, na sua cultura, a passagem da mulher dos desígnios dos pais para os desígnios de um esposo. “Na minha vila, a única vila do mundo, as mulheres sonhavam com vestidos novos para saírem. Para serem abraçadas pela felicidade.”

Única filha de uma família de homens; sem mãe, criada pelo pai e pelo tio, essa personagem foi educada ao modo das três irmãs no conto “As três irmãs”: com o intuito de servirem aos homens da família quando estes estiverem velhos. Inicia-se aí um movimento de cerceamento do corpo - “Eu me guardava bordando, dobrando as costas para que meus seios não desabrochassem. Cresci assim, querendo que meu peito mirrasse na sombra.” - e de cerceamento da própria existência.

A mulher em “A saia almarrotada” vai se desenvolvendo para a morte, para a fantasmagoria, totalmente à parte de seu universo em que “as meninas soltavam idades e destinavam as ancas para as danças”.

A elaboração desse espaço de clausura é algo que se deixa transparecer no próprio tom de construção da narrativa, toda como se aferisse a distância e o volume das palavras e das orações até o instante em que ocorre o que poderíamos chamar de transbordamento da fala. “O meu rabo nunca foi louvado por olhar de macho.” O passo seguinte não será outro senão a tentativa de concretização de uma morte já há muito decretada. 

A tentativa de suicídio falhada pela intervenção dos irmãos parece querer evocar a ideia de uma “sina feminina”, que, nascida a mulher para perecer aos auspícios do macho, deve levar a comenda até o fim dos dias. A tentativa de suicídio é também uma fuga da clausura. Uma libertação do corpo-fêmea. Uma comunhão desse transbordamento ensaiado momentos antes no tom bruto da linguagem: “Lancei, sim, fogo sobre mim mesma. Meus irmãos acorreram, já eu dançava entre labaredas, acarinhada pelas quenturas do enfim. E não eram chamas. Eram as mãos escaldantes do homem que veio tarde, tão tarde que as luzes do baile já haviam esmorecido.” (p.32).

Signo do masculino, o fogo que poderia se firmar como a libertação do corpo-fêmea, leva a personagem a se fechar ainda mais na redoma do exílio em que vivia. Se aquilo com que o pai sonhava era que ela ficasse feia, “desviçosa a vida inteira”, o fogo lhe proporciona. Aquele estágio de suspense do ocorrido ou não dado no desfecho - lembro aqui de “O homem cadente”- aqui se repete: “Em gesto arrastado como se o meu braço atravessasse outra vez a mesa da família. E me solto do vestido. Atravesso o quintal em direcção à fogueira. Algum homem me visse, a lágrima tombando com o vestido sobre as chamas: meu coração, depois de tudo, ainda teimava?” (p.32).

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>>> Acompanhe aqui a leitura dos contos de O fio das missangas.


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