Miacontear - O cesto
Por Pedro Fernandes
“Pela milésima vez me preparo para ir visitar meu marido ao hospital. Passo uma água pela cara, penteio-me com os dedos, endireito o eterno vestido. Há muito que não me detenho no espelho. Sei que, se me olhar, não reconhecerei os olhos que me olham. Tanta vez já fui em visita hospitalar, que eu mesma adoeci. Não foi doença cardíaca, que coração, esse já não o tenho. Nem mal de cabeça porque há muito que embaciei o juízo. Vivo num rio sem fundo, meus pés de noite se levantam da cama e vagueiam para fora do meu corpo. Como se, afinal, o meu marido continuasse dormindo a meu lado e eu, como sempre fiz, me estirasse para outro quarto no meio da noite. Tínhamos não camas separas, mas sonos apartados.” (p.21).
Assim inicia, a meu ver, um dos contos mais densos de O fio das missangas.
O narrador é uma mulher presa à rotina de levar, diariamente, atenção ao marido que está em coma no hospital. Entregue a esse movimento de ir-e-vir casa-hospital-casa ela é um sujeito sem existência própria ou de existência presa a ordem cerceadora do macho, que, mesmo estando no estágio em que está, ocupa uma dimensão simbólica de domínio internalizada na vivência da mulher.
Castrada psiquicamente e existencialmente tudo lhe é redoma - a rotina, a casa, o quarto, o hospital, o silêncio. Redoma preservada simbolicamente pelos lençóis que cobrem o espelho de casa para que ela não se enxergue neles e pela castração da própria fala, imposta também por ela própria, fala que tenderá a escorrer por outra dimensão - a da escrita -, desejo que mantém a personagem.
A atitude de escrita lhe seria uma maneira de vencer o estágio de submissão e de afasia: “sim, lhe escreveria uma carta, feita só de desabotoada gargalhada, decote decaído, feita de tudo o que nunca me autorizou. E nessa carta, ganharia coragem e proclamaria: - Você, marido, enquanto vivo me impediu de vier. Não me vai fazer gastar mais vida, fazendo demorar, infinita, a despedida.” (p.22). A escrita é o estágio de libertação, tomada de consciência e reconstrução do sujeito.
Outra atitude será a de, por acaso, vê-se no reflexo no espelho. O espelho como janela. Espaço de devaneio. Espaço de saída de si e de concretização da existência física do sujeito. “E descubro a curva do corpo, o meu busto ainda hasteado. Todo o rosto, beijo os dedos, fosse eu outra, antiga e súbita amante de mim. O cesto cai-me da mão, como se tivesse ganhado alma.” (p.23).
O cesto é a aliança simbólica de união/ submissão dessa mulher ao seu marido. Sua queda representa um lapso, uma fratura nessa submissão que vem pela miragem no espelho e o reconhecimento de sujeito submisso e simultaneamente o seu reconhecimento enquanto corpo pulsante. As três ações: o interesse pela escrita, o refletir-se no espelho, o largar o cesto inauguram um espaço de sujeito ativo e escapa no desejo “- Só peço um oxalá: que eu fique viúva o quanto antes!”
Mas nem tudo finda com a materialização dessa libertação do feminino. Ao saber da morte real de seu marido, ela retorna para a clausura de si; reconhece-se condenada a uma força maior que a oprime; força essa que é dada não apenas pela figura do marido, mas pelo modelo social em que está inserida.
Parece que o narrador de Mia Couto quer nos dizer que séculos e séculos de dominação masculina não se apaga com uma rápida mirada no espelho e o reconhecimento da mulher do seu estágio de submissão. O trajeto é mais complexo. Inaugura-se aqui um trajeto de sujeito errante: “Amanhã, tenho que me lembrar para não preparar o cesto da visita”.
Ligações a esta post:
>>> Acompanhe aqui a leitura dos contos de O fio das missangas.
Comentários