Miacontear - Inundação
Por Pedro Fernandes
“Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem.”
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O traço de sonho do impossível é uma constante, como já notei em “O homem cadente”. O conto “Inundação” recupera outra vez essa dimensão que se intercala por outro traço, o da memória. Envolto numa atmosfera onírica, temos aqui o tom agridoce da recordação que perscruta o espaço da casa e os movimentos da figura materna - como a figura central, que ordena (no sentido de organizar, cuidar), a que põe sentido, mas também com a que padece de um estágio de submissão pelo tom com que são trabalhadas e retrabalhadas a ideia do canto materno: “Bastava que a voz de minha mãe em canto se escutasse para que, no mais lúcido meio-dia, se fechasse a noite. Lá fora, a chuva sonhava, tamborileira. E nós éramos meninos para sempre.” (p.25).
Tal gesto, Mia Couto parece copiar de um poeminha de Paulo Leminski: “Minha mãe dizia: / - Ferve água!/ - Frita, ovo!/ - Pinga, pia!/ E tudo obedecia.” A mágica materna não deixa de revelar a condição dessa mulher para o trabalho doméstico, purga contínua e invisível.
Aliás, parece ser esse o tom do feminino nesses contos de O fio das missangas. São mulheres presas em universos pequenos, redomas subjetivas, cercadas por um círculo invisível e poderoso de uma ordem (que se quer universal) do homem. Mulheres silenciadas, seja pelo trabalho, seja pela maneira como são tratadas.
Em “Inundação”, o narrador, ao rememorar a mãe, rememora a tristeza dela na suposta perda do marido. Esse universo parece está submetido a uma entropia quando a figura masculina se vai. A imagem do “choro delgadinho” da mãe, dos vestidos desfeitos em pó, das cartas despidas da tinta são exemplos citáveis desse estágio de “enxurrada”. Bastará o suposto retorno do marido para a devolução das formas e cores dos vestidos e o regresso da tinta ao papel.
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>>> Acompanhe aqui a leitura dos contos de O fio das missangas.
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