Liquidação, de Imre Kertész
Por Darío Villanueva
Antes de B. que deu desde então nome a uma história
macabra: sua mãe, uma judia húngara, havia conseguido a cumplicidade de blokova, a comandante polonesa da enfermaria
hospitalar, para ser inscrita como a prisioneira eslovaca que acabava de
morrer, o que incrementava as possibilidades de sobrevivência do filho que ia
dar luz frente aos muito escassos judeus marcados com a letra A.
Este episódio recorda o que narra Jorge Semprún
em Viverei com seu nome, morrerá com o
meu, e fala dessa evidência que o próprio Kertész relembrou em seu discurso
de recepção do Prêmio Nobel: umas vezes como elogio, outras como censura, todo
mundo diz que ele é um escritor monotemático, pois o Holocausto e suas experiências
dos campos de concentração (Kertész também esteve em Buchenwald) marcam toda sua
obra.
Seu último romance ratifica esta sua condição de
escritor obcecado pelo que chama “o mito de Auschwitz”, que entre outras coisas
significa o reconhecimento de que é tão singular da condição humana o Mal como o
seu oposto, tudo isso num cenário em que Deus está morto, ideia que Kertész,
tradutor de Nietzsche, não partilha completamente. Pode-se dizer que as páginas
de Diário de Bordo oferece o melhor
acompanhamento possível para a trilogia que deu forma ao autor, mas não deixarão
tampouco de ser úteis para a leitura cabal de Liquidação, que apesar da sua brevidade é novamente um texto não
fácil, tanto no que se refere à sua temática sombria como sua própria
composição. Sobre a memória do Holocausto Kertész erige uma espécie de
neoexistencialismo niilista que contrasta com a não transcendência e o otimismo
pueril da pós-modernidade, qualificada aqui como “a época da catástrofe”,
consistente nem mais nem menos que no “ser sem Eu”.
O escritor protagonista de Liquidação estabelece uma terrível metáfora ao aludir, em sua carta
de despedida, a “este miserável campo de concentração terrena que chamam vida”;
e em Diário de bordo, o próprio
autor, que cita nesta oportunidade Sartre, reconhece que ele procede do mesmo
universo de pensamento, pelo que talvez resulte numa condição intempestiva: “Minhas
raízes se aprofundam no terreno desse existencialismo posterior à guerra: ainda
podem crescer furtos novos em tal terreno?”
Segue vigente aqui, como também
estava em O fiasco (1988), o aprofundamento
em si e no porquê da escrita, tema relacionável (como o discurso do Nobel
apontou) com um individualismo extremo do autor, que confessava ali haver escrito
exclusivamente para si, como uma libertação puramente subjetiva, em atitude de
discreta mas radical rebeldia contra a opressão política do sistema kadarista
sem pretender nem sequer encontrar um leitor. Quase como uma questão de
sobrevivência pessoal.
E é muito significativo encontrar essa mesma
atitude em Gao Xingjián (também refém de um regime comunista), que tanto em
seus textos teóricos como no romance O
livro do homem só afirma sua convicção de que “eu não sou nada, à parte de
mim mesmo”, e proclama sua censura total às limitações da literatura dominada não
só pelas diretrizes políticas mas pela tirania do mercado. Em Liquidação o escritor suicida assegura
ainda que “não quero levantar minha tenda na feira da literatura”, ao mesmo
tempo que seu editor e de certo modo um alter ego de Amargo só acredita na escrita,
a única capaz de dignificar o caos do mundo, para concluir que “o homem vive
como um verme mas escreve como os deuses”.
Ambas obras, a de Kertész e a da Xingjián vêm
representar um bocado de ar fresco no rarefeito recinto da literatura
pós-moderna. Mas nada se encontrará nelas de leveza. Muito pelo contrário, e
sobretudo no caso do escritor húngaro, não se prometem atenuantes, nem respirações.
Voltamos à Literatura com maiúscula, a dos grandes nomes e das grandes ideias,
que por refletir sobre si mesma conduz a alguma das múltiplas formas de
duplicação interior, de myse en abîme,
que configuram todo meta-romance.
Em Liquidação
compartilha o protagonismo com B., seu editor Amargo, uma referência que remete
aO fiasco em que várias personagens
tinha seu nome relacionado à ideia de “pétreo”. Sua frustração o faz também, em
parte, autor do texto a que pertence na qualidade de destacada personagem, para
o que Kertész joga habilidosamente com a terceira pessoa narrativa – um narrador
externo – com que a obra inicia e conclui, e com a troca, sem solução de
continuidade, com a primeira. Do eu, Amargo narra, em 1999, o episódio nuclear
de 1990, o suicídio de B. e a busca sem retorno de um de seus manuscritos, o de
um romance que finalmente sabemos que foi queimado por sua companheira Judith
seguindo os desejos do autor. Médica,
Judith foi também quem facilitou a morfina necessária para consumar o “suicídio filosófico”
do companheiro; a voz dela é igualmente privilegiada com o uso do eu narrativo
no momento de seu posicionamento.
Amargo acredita, erroneamente, como herdeiro
de B., que naquele romance está a história das personagens próximas dele. Mas na
realidade não trata tanto dos acontecimentos como do sem sentido sobre a vida. Judith,
a única que leu o manuscrito, revela que tudo se resume na luta entre uma
mulher e um homem que não lhe perdoa o desejo de ter um filho, tema que
certamente está, como o do suicídio, nas páginas do Diário de bordo. Trata-se,
pois, de “um escrito de acusação contra a vida”, mas as histórias das
personagens de Liquidação aparecem refletidas numa obra de teatro escrita por
B., cujas sucessivas cenas respondem ponto a ponto a suas reações e pensamentos
depois de conhecer as causas de seu suicídio.
Praticamente
a metade do texto deste romance possui uma estrutura menos espiralada, não alheia
aos recursos da intriga romanesca mais comum. Tudo se desenvolve a partira da
ligação que Amargo recebe de Sára com a notícia depois da visita à casa de B.,
sobre a dissimulação da mulher e o resgate dos papéis antes da chegada da
polícia. E logo, a obsessão do editor por recuperar o hipotético romance que B.
havia escrito e Judith destruiu depois de haver lido. Jogo de espelhos: o que o romance não inclui está na obra de teatro inserida no texto, que em algum
momento, a partir de um rascunho, se reproduz em forma de verso livre; Amargo
editor que quisera ser escritor como seus alunos; o estigma de Auschwitz
presente em B. é por sua vez a obsessão de Judith, a mulher judia que não renunciou
ter filhos e, por isso uma leve esperança.
Kertész destaca
a literatura de língua espanhola com uma atenção que é muitas vezes impossível
de encontrar nos escritores franceses ou anglo-saxões. Em seu diário merecem
lugar tanto San Juan de La Cruz como Ortega y Gasset; em Liquidação, à margem do que Unamuno possa representar, será
Calderón de La Barca o que proporciona as chaves de compreensão de tão
mosqueado ideário da perda de esperança encerrado nesse romance e para transcender
a obsessão de Auschwitz que Kertész alimenta e teme como o fatal encapsulamento
da sua obra: “o delito maior do homem é haver nascido”, sentencia, por outro
lado – como Liquidação recorda –
muito antes de Schopenhauer.
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