A clarabóia
Arthur Luiz Piza |
Depois de publicar em 1947, pela editora Minerva, o romance Terra do pecado, antes batizado por A viúva, José Saramago, conforme revelou a exposição A consistência dos sonhos, teria se aventurado e tanto pelo território da escrita. Uma dessas aventuras é o romance A clarabóia que, por desejo do autor, nunca chegou a ser publicado, pelo menos em vida. A novidade é que ontem, pelo Dia Mundial do Livro, a Fundação José Saramago divulgou excerto inédito do referido romance. Não apenas isso, mas divulgou com esse excerto que o romance se publicará no fim do ano em Portugal e em outros países:
***
Por entre os véus oscilantes que
lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir rumores de loiça mexida e quase
juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos véus. Ia
aborrecer-se, mas percebeu, de repente, que estava acordando. Piscou os olhos
repetidas vezes, bocejou e ficou imóvel, enquanto sentia o sono afastar-se
devagar. Com um movimento rápido, sentou-se na cama. Espreguiçou-se, fazendo
estalar rijamente as articulações dos braços. Por baixo da camisola, os
músculos do dorso rolaram e estremeceram. Tinha o tronco forte, os braços
grossos e duros, as omoplatas revestidas de músculos encordoados. Precisava
desses músculos para o seu ofício de sapateiro. As mãos, tinha-as como
petrificadas, a pele das palmas tão espessa que podia passar-se nela, sem
sangrar, uma agulha enfiada.
Num movimento mais lento de
rotação, deitou as pernas para fora da cama. As coxas magras e as rótulas
tornadas brancas pela fricção das calças que lhe desbastavam os pelos
entristeciam e desolavam profundamente Silvestre. Orgulhava-se do seu tronco, sem
dúvida, mas tinha raiva das pernas, tão enfezadas que nem pareciam
pertencer-lhe.
Contemplando com desalento os pés
descalços assentes no tapete, Silvestre coçou a cabeça grisalha. Depois passou
a mão pelo rosto, apalpou os ossos e a barba. De má vontade, levantou-se e deu
alguns passos no quarto. Tinha uma figura algo quixotesca, empoleirado nas
altas pernas como andas, em cuecas e camisola, a trunfa de cabelos manchados de
sal-e-pimenta, o nariz grande e adunco, e aquele tronco poderoso que as pernas
mal suportavam.
Procurou as calças e não deu com
elas. Estendendo o pescoço para o lado da porta, gritou:
– Mariana! Eh, Mariana! Onde
estão as minhas calças?
(Voz de dentro:)
– Já lá vai!
Pelo modo de andar, adivinhava-se
que Mariana era gorda e que não poderia vir depressa. Silvestre teve que
esperar um bom pedaço e esperou com paciência. A mulher apareceu à porta:
– Estão aqui.
Trazia as calças dobradas no
braço direito, um braço mais gordo que as pernas de Silvestre. E acrescentou:
– Não sei que fazes aos botões
das calças, que todas as semanas desaparecem. Estou a ver que tenho que passar
a pregá-los com arame...
A voz de Mariana era tão gorda
como a sua dona. E era tão franca e bondosa como os olhos dela. Estava longe de
pensar que dissera um gracejo, mas o marido sorriu com todas as rugas da cara e
os poucos dentes que lhe restavam. Recebeu as calças, vestiu-as sob o olhar
complacente da mulher e ficou satisfeito, agora que o vestuário lhe tornava o
corpo mais proporcionado e regular. Silvestre era tão vaidoso do seu corpo como
Mariana desprendida do que a Natureza lhe dera. Nenhum deles se iludia a
respeito do outro e bem sabiam que o fogo da juventude se apagara para nunca
mais, mas amavam-se ternamente, hoje como há trinta anos, quando do casamento.
Talvez agora o seu amor fosse maior, porque já não se alimentava de perfeições
reais ou imaginadas.
Silvestre foi atrás da mulher até
à cozinha. Enfiou na casa de banho e voltou daí a dez minutos, já lavado. Não
vinha penteado porque era impossível domar a grenha que lhe dominava (dominava
é o termo) a cabeça – o “lambaz do barco”, como lhe chamava Mariana.
As duas tigelas de café fumegavam
sobre a mesa, e havia na cozinha um cheiro bom e fresco de limpeza. As faces
redondas de Mariana resplandeciam, e todo o seu corpo obeso estremecia e se
agitava movendo-se na cozinha.
– Cada vez estás mais gorda,
mulher!...
E Silvestre riu. Mariana riu com
ele. Duas crianças, sem tirar nem pôr. Sentaram-se à mesa. Beberam o café
quente em longos sorvos assobiados, por brincadeira. Cada um queria vencer o
outro no assobio.
– Então, que resolvemos?
Agora, Silvestre já não ria.
Mariana também estava sisuda. Até as faces pareciam menos coradas.
– Eu não sei. Tu é que resolves.
– Já ontem te disse. A sola está
cada vez mais cara. A freguesia queixa-se de que levo caro. É a sola... Não
posso é fazer milagres. Sempre queria que me dissessem quem é que trabalha mais
barato que eu. E ainda se queixam...
Mariana deteve-o no desabafo. Por
este caminho não resolviam nada. O que era preciso era ver essa questão do
hóspede.
– Pois é, fazia jeito.
Ajudava-nos a pagar a renda e, se fosse um homem sozinho e tu quisesses
encarregar-te da roupa, a gente equilibrava-se.
Mariana escorripichou o café
adocicado do fundo da tigela e respondeu:
– Cá por mim, não me importo.
Sempre é uma ajuda...
– Pois é. Mas estarmos outra vez
a meter hóspedes, depois de nos vermos livres dessa cavalheira que se foi
embora...
– Que remédio! Seja ele boa
pessoa... Eu dou-me bem com toda a gente, se se derem bem comigo.
– Experimenta-se uma vez mais...
Um homem só, que só venha dormir, é o que convém. Logo, à tarde, vou pôr o
anúncio. – Mastigando ainda o último bocado de pão, Silvestre levantou-se e
declarou: – Bom, vou trabalhar.
Regressou ao quarto e caminhou
para a janela. Afastou a cortina que formava um pequeno biombo que o isolava do
quarto. Havia um estrado alto e sobre ele a banca de trabalho. Sovelas, formas,
bocados de fio, latas de prego miúdo, retalhos de sela e pele. A um canto, a
onça de tabaco francês e os fósforos.
Silvestre abriu a janela e deitou
uma vista de olhos para fora. Nada de novo. Pouca gente passava na rua. Não
muito longe, uma mulher apregoava fava-rica. Silvestre não chegava a perceber
como vivia aquela mulher. Nenhum dos seus conhecidos comia fava-rica, ele
próprio não a comia há mais de vinte anos. Outros tempos, outros costumes,
outras comidas. Resumida a questão nestas palavras, sentou-se. Abriu a onça,
pescou as mortalhas na barafunda de objetos que pejavam a banca, e fez um
cigarro. Acendeu-o, saboreou uma fumaça e deitou mãos ao trabalho. Tinha umas
gáspeas a pôr, e aí estava uma obra em que sempre aplicava todo o seu saber.
De vez em quando, relanceava os
olhos para a rua. A manhã ia aclarando pouco a pouco, embora o céu estivesse
coberto e houvesse na atmosfera um ligeiro véu de névoa que esbatia os
contornos das coisas e das pessoas.
Na multidão de ruídos que já
enchia o prédio, Silvestre começou a distinguir um bater de saltosnos degraus
da escada. Identificou-os imediatamente. Ouviu abrir a porta que dava para a
rua e debruçou-se:
– Bom dia, menina Adriana!
– Bom dia, senhor Silvestre.
A rapariga parou debaixo da
janela. Era baixinha e usava óculos de lentes grossas que lhe transformavam os
olhos em duas bolinhas minúsculas e inquietas. Estava a meio do caminho dos
trinta aos quarenta anos, e já um que outro cabelo branco lhe riscava o
penteado simples.
– Então, ao seu trabalho, heim?
– É verdade. Até logo, senhor
Silvestre.
Era assim todas as manhãs. Quando
Adriana saía de casa já o sapateiro estava à janela do rés do chão. Impossível
escapar sem ver aquela gaforina desgrenhada e sem ouvir e retribuir os
inevitáveis cumprimentos. Silvestre seguiu-a com os olhos. Assim, de longe,
parecia, na comparação pitoresca do sapateiro, “um saco mal atado”. Chegada à
esquina da rua, Adriana voltou-se e acenou um adeus para o segundo andar.
Depois, desapareceu.
Silvestre largou o sapato e
torceu a cabeça para fora da janela. Não era bisbilhoteiro, mas gostava das vizinhas
do segundo, boas freguesas e boas pessoas. Com a voz alterada pela torção do
pescoço, saudou:
– Viva, menina Isaura! Que tal o
dia, hoje?
Do segundo andar, atenuada pela
distância, veio a resposta:
– Não está mau, não. O
nevoeiro...
Não se chegou a saber se o
nevoeiro prejudicava, ou não, a beleza da manhã. Isaura deixou morrer o diálogo
e fechou a janela devagar. Não desgostava do sapateiro, do seu ar a um tempo
refletido e risonho, mas nessa manhã não sentia ânimo para conversar. Tinha um
monte de camisas para acabar até ao fim da semana. Sábado tinha que
entregá-las, desse lá por onde desse. Por sua vontade, acabaria de ler o
romance. Só lhe faltavam umas cinquenta páginas e estava na passagem mais
interessante. Aqueles amores clandestinos, sustentados através de mil
peripécias e contrariedades, prendiam-na. Além disso, o romance estava bem
escrito. Isaura tinha experiência bastante de leitora para assim julgar.
Hesitou. Mas bem via que nem sequer tinha o direito de hesitar. As camisas
esperavam-na. Ouvia lá dentro um ruído de vozes: a mãe e a tia falavam. Muito
falavam aquelas mulheres. Que tinham elas a dizer todo o santo dia, que não
estivesse já dito mil vezes?
Atravessou o quarto onde dormia
com a irmã. O romance estava à cabeceira. Lançou-lhe os olhos vorazes, mas
seguiu. Parou diante do espelho do guarda-vestidos que a refletia da cabeça aos
pés. Trazia uma bata caseira que lhe modelava o corpo esguio e magro, mas
flexível e elegante. Com as pontas dos dedos percorreu as faces pálidas onde as
primeiras rugas abriam sulcos finos, mais adivinhados que visíveis. Suspirou
para a imagem que o espelho lhe mostrava e fugiu dela.
Na cozinha, as duas velhas
continuavam a falar. Muito parecidas, os cabelos todos brancos, os olhos castanhos,
os mesmos vestidos negros de corte simples, falavam com vozinhas agudas e
rápidas, sem pausas e sem modulação:
– Já te disse. O carvão é só
terra. É preciso ir reclamar à carvoaria – dizia uma.
– Está bem – respondia a outra.
– Que estão a dizer? – perguntou
Isaura, entrando.
Uma das velhas, a de olhar mais
vivo e de cabeça mais ereta, respondeu:
– É o carvão que é uma lástima.
Tem que se reclamar.
– Está bem, tia.
Tia Amélia era, por assim dizer,
a ecónoma da casa. Era ela quem cozinhava, fazia contas e dividia as rações
pelos pratos. Cândida, a mãe de Isaura e Adriana, tratava dos arranjos
domésticos, das roupas, dos pequenos bordados que ornamentavam profusamente os
móveis e dos solitários com flores de papel que só eram substituídas por
autênticas flores nos dias festivos. Cândida era a mais velha, e, tal como
Amélia, viúva. Viúvas a que a velhice já tranquilizara.
Isaura sentou-se à máquina de
costura. Antes de começar o trabalho, olhou o rio que se estendia muito largo,
com a outra margem oculta pelo nevoeiro. Parecia o oceano. Os telhados e as
chaminés estragavam a ilusão mas, mesmo assim, fazendo força para os não ver, o
oceano surgia nos poucos quilómetrosde água. Uma alta chaminé de fábrica, à
esquerda, esborratava o céu branco com golfadas de fumo.
Isaura sempre gostava daqueles
momentos em que, antes de curvar a cabeça sobre a máquina, deixava correr os
olhos e o pensamento. A paisagem era sempre igual, mas só a achava monótona nos
dias de verão teimosamente azuis e luminosos em que tudo é evidente e
definitivo. Uma manhã de nevoeiro como esta, de nevoeiro delgado que não
impedia de todo a visão, cobria a cidade de imprecisões e de sonho. Isaura
saboreava tudo isto. Prolongava o prazer. No rio ia passando uma fragata, tão
maciamente como se flutuasse numa nuvem. A vela vermelha tornava-se rosada
através das gazes do nevoeiro. Súbito, mergulhou numa nuvem mais espessa que
lambia a água e, quando ia surdir de novo nos olhos de Isaura,
desapareceu atrás da empena de um prédio.
Isaura suspirou. Era o segundo
suspiro nessa manhã. Sacudiu a cabeça como quem sai de um mergulho prolongado,
e a máquina matraqueou com fúria. O tecido corria debaixo da patilha e os dedos
guiavam-no mecanicamente como se fizessem parte da engrenagem. Aturdida pelo
barulho, pareceu a Isaura que alguém lhe falava. Deteve a roda bruscamente e o
silêncio refluiu. Voltou-se para trás:
– O quê?
A mãe repetiu:
– Não achas que é um bocadinho
cedo?
– Cedo? Porquê?
– Bem sabes... O vizinho...
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