Miacontear - O homem cadente
Por Pedro Fernandes
Ilustração: Nikolaus Heidelbach |
Eis o segundo conto de O fio das missangas: “O homem cadente” Misto de sonho kafkiano, o conto dá contas de um fato insólito: Zuzé Neto, amigo do narrador, cisma, e de um hora para outra, já no início da narrativa, “está caindo”.
Vale dizer que a linguagem aqui é seu ponto de inflexão maior. Ao usar o caindo como expressão de um fato e para uma forma verbal - cair - que, pelo sentido que carrega, supostamente não lhe permite um gerúndio, o narrador acaba por ressaltar o poder demiúrgico da palavra. “Aquele gerúndio era um desmando nas graves leis da gravidade: quem cai já caiu” (p.15).
Com este conto Mia Couto demonstra que a palavra que rege (e mesmo é forma enformante) o mundo e o constitui também é capaz de colocar em xeque as próprias leis fechadas dos sistemas, a começar pelo da própria linguagem.
E Zuzé Neto flutua no ar, “como água real”, caindo para cima, em artes de aero-anjo. O fato é suficiente para instaurar o espaço inominado no centro dos interesses. Em torno da forma aero-angelical que se torna um evento discursivo se inaugura toda a sorte de atividades - reitera-se a balbúrdia dos discursos religiosos e políticos, reengendram-se novas assuntos para conversa dos desocupados, montam-se novas formas de comércio... Até que, num parágrafo, tudo se desfaz.
O narrador assume o posto de comando da narrativa e aproveitando da atmosfera da história reduz tudo a um sonho. Quem está caindo e todo esse conglomerado que se forma em torno do acontecimento se desfaz num ponto: “ponto um ponto. Nem me alongo para não estigar engano. Pois tudo o que vos contei, o voo de Zuzé e a multidão cá em baixo, tudo isso de um sonho se tratou. Suspirado fiquemos, de alívio. A realidade é mais rasteira, feito de peso e de pés na terra.” (p.18).
O voo de Zuzé além recobrar o espaço de concretude da palavra e sua capacidade de moldar o real sensível é uma bela metáfora de que os sonhos pairam sobre a realidade rasteira e por esse fato são eles necessários ou materialidades da qual devemos, sempre que possível, tomar posse, dado o poder que tem de interferir no curso da nossas existências.
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