Miacontear - As três irmãs

Por Pedro Fernandes
Tela de Abias Ukuma, pintor Angolano


O primeiro conto de O fio das missangas intitula-se “As três irmãs”. O enredo dá conta de quatro personagens: Gilda, Flornela e Evelina, filhas de Rosaldo, viúvo que leva o protecionismo paterno ao extremo: cria as meninas num completo estado de isolamento. São-lhes as filhas “exclusivas e definitivas”.

O ponto de vista do narrador contempla as três irmãs com o olhar de quem contempla um quadro; estratégia elaborada pelo autor para passar à superfície da narrativa a monotonia com que se movimentam esses perfis femininos no seu espaço cotidiano, ou o silêncio e o estágio de submissão a que estão submetidos.

Esse olhar também consegue traduzir o movimento do tempo e a própria existência das personagens, já que dilata a ideia do cronológico para o psicológico. Trata-se de um olhar que divaga pelas margens do quadro, mas o intuito é extrair com palavras o silêncio da composição.

Cada uma das três irmãs são criadas para suprir as necessidades de Rosaldo. Assim, Gilda, a primeira, é a rimeira; Flornela, a receitista e Evelina, a bordadeira. O enclausuramento a que estão reduzidas se traduz pelo comportamento das próprias personagens, comportamento que vai lhe corrompendo a própria existência ou transferindo os veios da existência para as atividades que desempenham a ponto de fundir-se sujeito-objeto:

“Todas as tardes, Gilda trazia para o jardim um volumoso dicionário. O gosto contido, o olhar regrado, o silêncio esmerado. Até o seu sentar-se era educado: só o vestido suspirava. Molhava o dedo sapudo paa folhear o grande livro. Aquele dedo não requebrava, como se dela não recebesse nervo. Era um dedo sem sexo: só com sexo. Em voz alta consoava as tónicas: Sol, bemol, anzol...

De quando em quando, uma brisa desarrumava os arbustos. E o coração de Gilda se despenteava. Mas logo ela se compunha e, de novo, caligrafava. Contudo, a rima não gerava poema. Ao contrário, cumpria a função de afastar a poesia, essa que morava onde havia coração. Enquanto bordava versos, a mais velha das três irmãs não notava como o mundo fosforecia em seu redor. Sem saber Gilda estava cometendo suicídio. Se nunca chegou ao fim, foi por falta de rima.” (p.10)

O estádio de anomia - que vez ou outra é interferido por algum elemento externo, mas logo se recompõe - será abalado de vez, quando num momento em que estão todas metidas nos seus respectivos afazeres, chega nesse lugar zero um “formoso jovem”. Espécime de Don Juan, será ele quem intervirá no desmoronamento da clausura - ou não - dado o fato de que, enciumado com o intruso, Rosaldo ameaça o rapaz - “Cortar o mal e a raiz” (p.12) - e finda que “os dois homens se beijaram, terna e eternamente.” (p.12-13). 

Esse desfecho me faz ver que o tédio a que estavam submetidas essas personagens beira o extremo de não existirem as barreiras convencionadas socialmente, como as divisões de sexo e os graus de parentesco. Apesar disso, o que prevalece no conto é a interdição no qual os sujeitos não têm trânsito próprio e são comandados por um poder autoimposto na figura de Rosaldo, poder este que não apenas comanda o enclausuramento mas que padece também da sua própria estrutura.

Ligações a esta post
>>> Acompanhe aqui a leitura dos contos de O fio das missangas.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual