García Márquez vai ao dentista



Nota: Foi pesquisando materiais para escrever uma post sobre o escritor Gabriel García Márquez que encontrei com este texto publicado em dezembro de 2010, no caderno do jornal Folha de São Paulo, o Ilustríssima. Com a desenvoltura de uma anedota o peruano Julio Villanueva Chang compõe um perfil - cotidianesco - do Prêmio Nobel de Literatura. O perfil foi escrito a partir de uma entrevista que Chang fez por através do dentista de Gabriel García Márquez, Jaime Gazabón, um contorno àquele que nutria uma aversão a repórteres. Em entrevista para o jornal O Globo quando esteve na FLIP de 2010, Chang respondeu como foi compor esse perfil "enviesado" do escritor colombiano: "Todos, mesmo que só uma vez, já pedimos a um ser querido que nos olhasse nos olhos. García Márquez não dá entrevistas e um caminho para aproximar-se dele é tentar conhecê-lo na diagonal, ou seja, pelos olhos de outra pessoa. Procurar o dentista de García Márquez não foi uma tentativa de ser real-maravilhoso, e sim de encontrar um olhar mais sincero e espontâneo sobre ele. Uma das pessoas que melhor conheceu Picasso foi seu barbeiro. Por sua vez, homens e mulheres traídos sentem em algum momento que não conhecem realmente seus amantes de tantos anos. Um dentista costuma ter um compromisso exclusivo com sua dentadura, mas este era também um compadre do escritor mais famoso do mundo. Tive a sorte de conhecê-lo como aluno de uma oficina de Alma Guillermoprieto na Fundación Nuevo Periodismo. Precisava fazer uma reportagem em Cartagena de Índias e o jornalista Gustavo Tatis me contou sobre Gazabón. Bastou ligar e marcar um encontro. "García Márquez vai ao dentista" nada mais é que a história secreta de um sorriso." (Pedro Fernandes)

***

I

O doutor Jaime Gazabón abriu a porta da sua clínica dental de Cartagena das Índias e descobriu García Márquez tão sozinho como um astronauta em sua sala de espera. Eram duas e trinta da tarde de 11 de fevereiro de 1991 e o paciente tinha chegado pontualmente a sua primeira consulta. "Em sete anos nunca chegou tarde", me contaria tempo depois o odontólogo. Na sua mesa de centro, havia literatura de consultório de dentista, umas revistas para bocejar a espera e ativar os efeitos sedantes de uma música de fundo. O doutor Gazabón parecia muito vivo debaixo de seus óculos de leitor de dentaduras. Tinha essa bonomia que transpira à gente da costa da Colômbia e uns bigodes que se esmeravam por competir com seu sorriso simétrico. Aquela primeira vez - me contou em 1999 - García Márquez havia chegado até ali em seu automóvel com chofer, em um bairro da cidade cujo nome é perfeito para um dentista: Bocagrande.

Quando o odontólogo saiu para recebê-lo, o escritor acabava de completar a mão a ficha clínica: "Nome do paciente: Gabriel García Márquez. Qual é sua ocupação? Paciente vitalício. Número de telefone: Cortado por falta de pagamento. Se é casado, ocupação de sua esposa: Sim, não faz nada. Para que companhia trabalha sua esposa? Quisera eu já sabê-lo. Nome da pessoa responsável por o pagamento do tratamento: Gabo, o filho do telegrafista. Você tem algum incômodo ou dor? Incômodo, sim, a dor virá depois. Poderia nos dizer quem o recomendou ao doutor? Sua fama universal". Foi o que García Márquez escreveu nessa primeira dramática visita que cedo ou tarde todos fazemos ao consultório de um tira-dentes. "Um conto é o que você conta a si mesmo na sala do dentista enquanto aguarda sua consulta", disse John Cheever.

Nos primeiros sete anos de consulta, o odontólogo tratou García Márquez com o respeitoso vocativo de maestro. Depois começou a chamá-lo compadre. Quando se inteirou de que a esposa do doutor estava grávida de seu sexto filho, García Márquez perguntou com o entusiasmo de um padre recém-ordenado: "E quando batizamos?". Ia ser o primeiro filho homem do dentista. Gazabón não entendeu a pergunta até que alguém que havia vivido no México explicar que nesse país, onde Gabo reside há décadas, às vezes se pede aos pais a honra de ser padrinho, não ao contrário. No dia do batismo, García Márquez e sua esposa Mercedes Barcha foram os primeiros a chegar à igreja.

- Não creio que nada seja casual - me diria seu dentista - Foi um batizado macondiano.

Aquela cerimônia não foi a primeira coincidência familiar. O doutor Gazabón recorda que as famílias de ambos tinham sido vizinhas no bairro de Pie de la Popa e que a irmã de García Márquez ia brincar com a sua irmã em casa. Nessa época, o dentista era um bebê de um ano e o escritor devia ser um jovem de vinte e poucos anos que andava mamando gallo, esse modo tão caribenho de ficar de fuleiragem e se vacinar contra o solene. Eram de gerações distantes: quando García Márquez ganhava o Nobel de Literatura, Gazabón fazia uma pós-graduação em Reabilitação Oral na Ohio State University. A primeira vez que o paciente visitou a casa de quem iria ser seu compadre, o romancista entrou pela porta principal e saiu pela da cozinha para cumprimentar as empregadas.

Desde então nenhum dentista havia calado tanto sobre a boca aberta de um escritor que detesta entrevistas. Segundo o médico, García Márquez gostava de repetir que cada vez que chegava a Cartagena das Índias, ele era o primeiro para quem telefonava. Desde que o visitou em seu consultório, a vida do doutor Gazabón sofreu uma metamorfose. O odontólogo era convidado a ler um fragmento de Cem anos de solidão no Museo Naval de Cartagena. Seus amigos lhe enviavam livros para que García Márquez fizesse uma dedicatória. Uma assinatura. Um garrancho. Por favor. As senhoras pediam para tirar uma foto com ele. Uma só. Um minuto. Por favor. Os pacientes que chegavam ao seu consultório viam, em frente à poltrona negra onde se sentavam, um quadro com uma fotografia do paciente ilustre e seu odontólogo invejado.

O escritor aparece recostado na mesma poltrona com uma camisa negra e as mãos juntas como se o dentista o tivesse amarrado. Quem via aquele retrato em cores acreditava que podia ser a travessura de um computador caribenho, uma tosca montagem eletrônica de um fã. O certo é que o quadro parecia servir ao dentista como una primeira anestesia para seus pacientes. Num golpe de vista se esqueciam de seus molares e qualquer careta de dor se transformava na pergunta de sempre. O que fazia García Márquez sentado ali?

II

Cinco anos depois de conhecê-lo no consultório em Cartagena das Índias, o doutor Gazabón abriu diante de mim uma pasta negra que guardava sob sete chaves. Tinha acabado de se mudar com sua família para Tampa, na Florida, logo depois de ter de partir da Colômbia, onde ele e sua esposa eram militantes evangelistas em uma comunidade cristã. Ambos pregavam em bairros populares onde não eram bem-vindos pela guerrilha. Era uma noite de outono e o dentista vestia uma camisa negra povoada de árvores. Estava de pé, em frente à mesa da copa de sua nova casa, buscando algo na pasta que acabava de abrir. Sua mudança para os Estados Unidos não terminava. No chão, ainda havia caixas para desempacotar. Debaixo da mesa, passeava Blackie, um cachorro pincher em miniatura que o dentista diz que só falta falar. Nas paredes estavam penduradas pinturas de sua esposa, a artista plástica Ángela Schiappa. Nos meses posteriores a sua chegada, o doutor Gazabón ainda não podia exercer a profissão de odontólogo na Florida. Enquanto isso, trabalhava de ceramista dental em um laboratório de próteses dentárias. Tinha se tornado um escultor de dentes de porcelana.

Já era meia-noite e o dentista extraiu da pasta uma minúscula bolsa de veludo azul, parecida com essas onde os joalheiros guardam metais preciosos para protegê-los dos arranhões e da deterioração do tempo. Em um dos quartos, Jaime Enrique de Jesús, seu filho mais novo e afilhado do escritor, tinha dormido. Havia visto uma fotografia em que García Márquez e sua mulher estavam com ele em frente ao padre no instante do batizado. Era então um bebê e agora tinha sete anos. Se lhe perguntavam sobre o padrinho, não lembrava de nada além do que o que seus pais lhe contaram. Mas essa noite o doutor Gazabón parecia estar disposto a me mostrar o que não me havia confiado cinco anos atrás, quando o conheci em seu consultório de Bocagrande. Nessa bolsa de veludo azul guardava um segredo.

III

Não foram nada novelescas as razões que levaram García Márquez ao consultório do doutor Gazabón. Um odontólogo de Bogotá havia feito una correção na dentadura do escritor, e lhe recomendou o ortodontista Luis Eduardo Botero para que continuasse seu tratamento em Cartagena das Índias. Era una operação de rotina com um desses especialistas que consertam dentes mal-posicionados. O ortodontista devolveu a dentição do escritor ao seu lugar devido, mas diagnosticou um problema periodontal. Em bom castelhano, uma dor na gengiva. Era a especialidade do doutor Gazabón, e o ortodontista o recomendou a García Márquez. Foi assim que naquela tarde de fevereiro de 1991 descobriu o filho do telegrafista na sala de espera de seu consultório em Bocagrande, depois de ele escrever seus dados clínicos em una ficha de papel-cartão que a secretaria Onira Madera lhe havia entregado.

- Foi como um presente de Deus - me disse Gazabón treze anos depois em sua casa na Florida.

Durante as consultas, a política era o que sublinhava em García Márquez o que tinha de mais terreno. Um dia o dentista se atreveu a comentar algo sobre Deus.

- Gabo fez o que qualquer pessoa faria - recordou. - Deu um drible e passou a outro tema.

O odontólogo entendeu que devia evitar assuntos divinos em suas conversas com o romancista. Porém havia una pergunta metafísica: que diabos ia fazer com suas lembranças quando García Márquez morrer.

- Não sei - me disse - Eu até posso morrer antes dele.

- Os dentistas não vão para o céu - adverti.

- Olha que eu vou - respondeu.

Não é ruim saber que alguém vai sempre até alguma parte. Sentir-se um homem bom parecia ser a única soberba no doutor Gazabón. Tinha escrito em sua história dental a última vez que atendeu García Márquez: 20 de janeiro de 1999. Foi uma quarta-feira. O dentista também recordava haver recebido uma chamada telefônica do escritor em dezembro desse ano apocalíptico.

Gabriel García Márquez sairia de Cartagena das Índias no século seguinte. Naquela época, um câncer linfático se manifestava. Segundo o dentista, houve o rumor de que o cantor Julio Iglesias queria comprar a casa do escritor. Antes de se mudar para os Estados Unidos, o doutor Gazabón tinha deixado uma carta para um dos irmãos do escritor com o pedido expresso de que a lesse. Também, uma caixa de biscoitos feitos por sua sogra. Essa noite de outono na Florida, quando estava a ponto de me mostrar o que guardava na pasta negra, o doutor Gazabón me disse que ainda não tinha recebido resposta.

IV

Não havia razões óbvias para explicar por que García Márquez o escolheu como seu dentista e depois compadre. O doutor Gazabón era um odontólogo de interior. Nas estantes de seu consultório de Cartagena das Índias não se encontrava nenhuma novela, apenas clássicos da dentadura anglo-saxã como Periodontal Disease, dolorosa literatura para odontologistas. O doutor Gazabón não havia lido a novela Anestesia local, de Günter Grass, nem o conto O dentista, de Alfred Polgar. Tampouco uma passagem de Memórias do subterrâneo, onde Dostoiévski escreve sobre a voluptuosidade de uma dor de dente. O doutor Gazabón tinha lido o poema Desiderata, que tinha pendurado na parede do consultório, encimando um móvel com enxágues bucais e dentaduras postiças. Em cima da mesa tinha um crânio que nada tinha que ver com Hamlet. Era o cenário de um dentista, o lugar comum da castração dental
O doutor Gazabón tinha uma teoria elementar: García Márquez havia escolhido a ele como compadre para romper com a rotina de famoso. Falava do escritor com familiaridade, admiração e sem falsas reverencias. "As pessoas se esquecem de que Gabo é um ser humano". Mas as pessoas também se esqueciam de que o dentista era um ser humano e lhe perguntavam quanto se podia cobrar de um compadre assim. "Poderia dizer quem o recomendou ao doutor? Sua fama universal", tinha escrito García Márquez em sua ficha de paciente.

V

O odontólogo seguia contando anedotas do Premio Nobel de Literatura enquanto revisava a pasta onde guardava suas mais íntimas recordações. A história clínica do paciente García Márquez, retratos de família com García Márquez, recortes de jornais sobre García Márquez, um dente de García Márquez. Sim. O tesouro do dentista era um molar com três raízes e una incrustação de ouro. Só de saber que havia pertencido ao romancista, aquele dente adquiria uma aparência de ficção e parecia mais horrível ainda no ato de tirá-lo de uma bolsa de veludo. Ver um dente fora da boca faz qualquer um passar a língua para verificar se os seus permanecem ali, dispostos a mastigar e morder. O molar de um gênio é tão feio quanto o de qualquer um e alimenta a ilusão de que todos somos iguais debaixo do boticão do dentista. Mas um dente de García Márquez em suas mãos é mais que isso. É a história secreta de um sorriso.

Há anos García Márquez já traía uma inexplicável predileção pelo tema dental. Dedicou alguns episódios de sua obra à nossa vulnerabilidade ante uma dor de dentes e à fascinação que pode causar una dentadura. Em Um dia desses, um de seus contos mais memoráveis, Aurelio Escovar, um dentista sem diploma, extrai sem anestesia o dente que torturou por cinco dias seu opositor, o prefeito de uma cidadezinha sem nome. Por sorte, García Márquez nunca quis ser prefeito e Gazabón é um odontólogo formado. Anos depois, em Cem anos de solidão, o romancista escreveu um episódio premonitório de sua primeira visita ao odontólogo: "Viram [os habitantes de Macondo] um Melquíades juvenil, recomposto, desenrugado, com a dentição nova e radiante. Quem se lembrava de suas gengivas destruídas pelo escorbuto, suas bochechas flácidas e seus lábios murchos, se apavorou diante daquela prova cabal dos poderes sobrenaturais do cigano". Em resumo: Melquíades tirou os dentes, envelhecendo de imediato, mas logo os colocou de novo e sorriu com o poder restaurado da sua juventude. O homem envelhece quando seus dentes não se repõem. García Márquez sabia bem disso. Perder um dente era também uma metáfora da perda do poder.

Não foi o primeiro escritor a se fascinar pela questão. Joyce e Nabokov haviam perdido a dentição antes de completar cinquenta anos, e não pouparam palavras para retratá-la em seus livros como algo mais que um traço fisionômico. Martin Amis, outro escritor do clube dos desdentados, ensaiou em seu livro Experiência uma explicação sobre a comunidade de escritores de dentes postiços: "Que mais tinham em comum Nabokov e Joyce além da péssima dentição e uma prosa soberba? O exílio e décadas de uma precariedade econômica próximo à indigência. E uma tendência compulsiva ao excesso. E a submissão desmedida que merecidamente lhes inspirava suas esposas". Qualquer semelhança com García Márquez é pura coincidência.

- É como um Deus da literatura. Todo mundo está interessado em qualquer coisa que ele faça - me disse ele - Gabo sabe que eu não posso esconder o que aconteceu entre nós.

O último dia em que o vi em seu consultório em Cartagena das Índias, o único dente que faltava a García Márquez era o siso. Mas anos antes, naquela primeira tarde em 1991, em seu consultório de Bocagrande, Gabriel García Márquez tinha uma cárie e o doutor Gazabón havia decidido obturar: injetou anestesia local, extraiu um molar, suturou a ferida e tempo depois colocou um implante no lugar. Segundo o dentista, o escritor nunca se queixou. Sem dúvida, desde essa primeira consulta houve uma perda. Na historia da literatura, sempre aconteceu assim: Homero era cego, à Cervantes faltava um braço, García Márquez tinha cárie.

- O fio dental é mais importante que a escova - me disse o doutor Gazabón.



* Folha de São Paulo, 19/12/2010. A tradução do texto é de Ronaldo Pelli.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #607

Boletim Letras 360º #597

Han Kang, o romance como arte da deambulação

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #596