Clarice Lispector: entrevistas ― Lygia Fagundes Telles
Um dos livros de leitura despretensiosa,
e por isso mesmo, delicioso de se ler, é Clarice Lispector: Entrevistas
(Editora Rocco). A vivência da escritora com o jornalismo permitiu o contato
com uma variedade de figuras, que vão de um Alceu Amoroso Lima a um Tarcísio
Meira, de Antônio Callado a um Zagallo. O destaque a seguir é a cópia da
conversa de Clarice com Lygia Fagundes Telles.
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Eu pretendia ir a São Paulo para
entrevistar Lygia Fagundes Telles, pois valia a pena a viagem. Mas acontece que
ela veio ao Rio para lançar seu novo livro, Seminário dos ratos. Entre
parênteses, já comecei a ler e me parece de ótima qualidade. O fato dela vir ao
Rio, o que me facilitaria as coisas, combina com Lygia: ela nunca dificulta
nada. Conheço a Lygia desde o começo do sempre. Pois não me lembro de ter sido
apresentada a ela. Nós nos adoramos. As nossas conversas são francas e as mais
variadas. Ora se fala em livros, ora se fala sobre maquilagem e moda, não temos
preconceitos. Às vezes se fala em homens.
Lygia é um best-seller no melhor sentido da palavra. Seus livros simplesmente
são comprados por todo o mundo. O jeito dela escrever é genuíno pois se parece
com o seu modo de agir na vida. O estilo e Lygia são muito sensíveis, muito
captadores do que está no ar, muito femininos e cheios de delicadeza. Antes de
começar a entrevista, quero lembrar que na língua portuguesa, ao contrário de
muitas outras línguas, usam-se poetas e poetisas, autor e autora. Poetisa, por
exemplo, ridiculariza a mulher-poeta. Com Lygia, há o hábito de se escrever que
ela é uma das melhores contistas do Brasil. Mas do jeitinho como escrevem
parece que é só entre as mulheres escritoras que ela é boa. Erro. Lygia é
também entre os homens escritores um dos escritores maiores. Sabe-se também que
recebeu na França (com um conto seu, num concurso a que concorreram muitos
escritores da Europa) um prêmio. De modo que falemos dela como ótimo autor.
Lygia ainda por cima é bonita.
Lygia Fagundes Telles. |
Comecemos pois:
Clarice Lispector: Como nasce um
conto? Um romance? Qual é a raiz de um texto seu?
Lygia Fagundes Telles: São
perguntas que ouço com frequência. Procuro então simplificar essa matéria que
nada tem de simples. Lembro que algumas ideias podem nascer de uma simples
imagem. Ou de uma frase que se ouve por acaso. A ideia do enredo pode ainda se
originar de um sonho. Tentativa vã de explicar o inexplicável, de esclarecer o
que não pode ser esclarecido no ato da criação. A gente exagera, inventa uma
transparência que não existe porque – no fundo sabemos disso perfeitamente –
tudo é sombra. Mistério. O artista é um visionário. Um vidente. Tem passe livre
no tempo que ele percorre de alto a baixo em seu trapézio voador que avança e
recua no espaço: tanta luta, tanto empenho que não exclui a disciplina. A
paciência. A vontade do escritor de se comunicar com o seu próximo, de seduzir
esse público que olha e julga. Vontade de ser amado. De permanecer. Nesse jogo
ele acaba por arriscar tudo. Vale o risco? Vale se a vocação for cumprida com
amor, é preciso se apaixonar pelo ofício, ser feliz nesse ofício. Se em outros
aspectos as coisas falham (tantas falham) que ao menos fique a alegria de
criar.
Clarice Lispector: Para mim a arte
é uma busca, você concorda?
Lygia Fagundes Telles: Sim, a arte é uma busca e a marca constante dessa busca
é a insatisfação. Na hora em que o artista botar a coroa de louros na cabeça e
disser, estou satisfeito, nessa hora mesmo ele morreu como artista. Ou já
estava morto antes. É preciso pesquisar, se aventurar por novos caminhos,
desconfiar da facilidade com que as palavras se oferecem. Aos jovens que
desprezam o estilo, que não trabalham em cima do texto porque acham que logo no
primeiro rascunho já está ótimo, tudo bem – a esses recomendo a lição maior que
está inteira resumida nestes versos de Carlos Drummond de Andrade:
Chega mais perto e contempla as palavras
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta
pobre ou terrível que lhe deres
Trouxeste a chave?
Você, Clarice, que é dona de um dos mais belos estilos da nossa língua, você
sabe perfeitamente que apoderar-se dessa chave não é assim simples. Nem fácil,
há tantas chaves falsas. E essa é uma fechadura toda cheia de segredos. De
ambiguidades.
Clarice Lispector: Fale-nos do Seminário
dos ratos.
Lygia Fagundes Telles: Procurei uma renovação de linguagem em cada conto desse
meu livro, quis dar um tratamento adequado a cada ideia: um conto pode dar
assim a impressão de ser um mero retrato que se vê e em seguida esquece. Mas
ninguém vai esquecer esse conto-retrato se nesse retrato houver algo mais além
da imagem estática. O retrato de uma árvore é o retrato de uma árvore. Contudo,
se a gente sentir que há alguém atrás dessa árvore, que detrás dela alguma
coisa está acontecendo ou vai acontecer, se a gente sentir, intuir que na
aparente imobilidade está a vida palpitando no chão de insetos, ervas – então
esse será um retrato inesquecível. O escritor – ai de nós – quer ser lembrado
através do seu texto. E a memória do leitor é tão fraca. Leitor brasileiro,
então, tem uma memória fragilíssima, tão inconstante. O padre Luís (um padre
santo que fez a minha primeira comunhão, foi ele quem me apresentou a Deus) me
contou que um dia conduziu uma procissão no Rio. A procissão saía de uma igreja
do Posto Um, dava uma volta por Copacabana e retornava em seguida. Muita gente,
todo mundo cantando, velas acesas. Mas à medida que a procissão ia avançando,
os fiéis iam ficando pelas esquinas, tantos botequins, tantos cafés. E o mar?
Quando finalmente voltou à igreja, ele olhou para trás e viu que restara uma
meia dúzia de velhos. E os que carregavam os andores. “As pessoas são muito
volúveis”, concluiu padre Luís. Em outros termos, o mesmo diria Garrincha
quando um mês depois de ser carregado nos ombros por uma multidão delirante,
com o mesmo fervor e no mesmo estádio foi fragorosamente vaiado. Tão volúveis…
Clarice Lispector: Isso não é
pessimismo?
Lygia Fagundes Telles: Não sou pessimista, o pessimista é um mal-humorado. E
graças a Deus conservo o meu humor, sei rir de mim mesma. E (mais
discretamente) do meu próximo que se envaidece com essas coisas, do próximo que
enche o peito de ar, abre o leque da cauda e vai por aí, duro de vaidade. De
certeza, tantas medalhas, tantas pompas e glórias, eu ficarei! Não fica nada.
Ou melhor, pode ser que fique, mas o número dos que não deixaram nem a poeira é
tão impressionante que seria inocência demais não desconfiar. Sou paulista, e
como o mineiro, o paulista é meio desconfiado. Então, o certo é dizer com
Millôr Fernandes: “quero ser amado em Ipanema, agora, agora”. Em Ipanema vou
lançar esse Seminário dos ratos. O que já é alguma coisa…
Clarice Lispector: Como nasceu
esse título?
Lygia Fagundes Telles: Houve em São Paulo um seminário contra roedores. Lá
acontecem diariamente dezenas de seminários sobre tantos temas, esse era contra
os ratos. “Daqui por diante eles estarão sob controle”, anunciou um dos
organizadores, e o público caiu na gargalhada, porque nessa hora exata um rato
atravessou o palco. Tantos projetos fabulosos, tantas promessas. Discursos e
discursos com pequenos intervalos para os coquetéis. Palavras, palavras. E de
repente pensei numa inversão de papéis, ou seja, nos ratos expulsando todos e
se instalando soberanos no seminário. “Que século, meu Deus”, exclamariam
repetindo o poeta. E continuariam a roer o edifício. Assim nasceu esse conto.
Clarice Lispector: Quais são os
temas do livro?
Lygia Fagundes Telles: São quatorze textos que giram em torno de temas que me
envolvem desde que comecei a escrever: a solidão, o amor e o desamor. O medo. A
loucura. A morte – tudo isso que aí está em redor. E em nós. Quando fico
deprimida vejo claramente essas três espécies em extinção: o índio, a árvore e
o escritor. Mas reajo, não sei trabalhar sem a esperança no coração. Sou de
Áries, recebo a energia do sol. E de Deus, o que vem a dar no mesmo, tenho
paixão por Deus.
Clarice Lispector: Há muita gente
louca no Seminário dos ratos?
Lygia Fagundes Telles: Sim, há um razoável número de loucos nesse meu livro e
também nos outros. Mas a loucura não anda mesmo por aí galopante? “Os homens
são tão necessariamente loucos que não ser louco representaria uma outra forma
de loucura”, disse Pascal.
Clarice Lispector: O que mais lhe
perguntam?
Lygia Fagundes Telles: Eis o que me perguntam sempre: compensa escrever?
Economicamente, não. Mas compensa – e tanto – por outro lado através do meu
trabalho fiz verdadeiros amigos. E o estímulo do leitor? E daí? “As glórias que
vêm tarde já vêm frias”, escreveu o Dirceu de Marília. Me leia enquanto estou
quente.
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