Correspondência na Barca: cartas trocadas entre Monteiro Lobato e Lima Barreto

Por Antonella Flavia Catinari



Lima,
Está escrito no livro do destino que não nos veremos nunca. (...) Espero, porém, que os fados afrouxarão suas leis férreas, e um belo dia, quando menos esperarmos,
– Lima!
– Lobato!
e ferraremos esse abraço encruado.
Lobato.

(Bilhete enviado por Monteiro Lobato a Lima Barreto, em outubro de 1920, por ocasião da visita de Lobato ao Rio de Janeiro e recolhido por Edgard Cavalheiro em A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto, publicada pelo Ministério da Educação e Cultura, em 1955)


Analisar a obra e a vida de Monteiro Lobato é um prazer e um desafio constantes, por trazer em cada nova mirada um ângulo ainda não revelado. Ao me debruçar na janela que permite vislumbrar sua trajetória, é sempre uma nova paisagem que se configura ante meus olhos. Como afirma Regina Zilberman em O correspondente fiel e a pesquisadora incansável, “Lobato sempre será capaz de apresentar uma faceta original ao indivíduo curioso e amante de sua obra”. 

Dentro da miríade de possibilidades de análise da obra de Monteiro Lobato, neste trabalho optei em apresentar como objeto de estudo uma parte da correspondência do autor paulista: aquela travada com o não menos polêmico autor carioca, Lima Barreto. Essa correspondência encontra-se reunida e comentada por Edgard Cavalheiro, fiel amigo e biógrafo de Lobato, num dos volumes da valiosa coleção “Os cadernos de cultura”, do Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura, publicada durante os anos de 1950. O livro A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto, editado em 1955, traça uma análise dessa correspondência e também dos dois volumes de A Barca de Gleyre – livro que contam 40 anos de correspondência travada entre Lobato e seu “amigo por escrito”, Godofredo Rangel.

A correspondência travada entre os dois autores liga-se, sobretudo, a duas das muitas facetas de Monteiro Lobato:  a de missivista e a de editor, uma vez que o criador da boneca Emília editou e publicou alguns títulos de Lima e as cartas trocadas entre ambos tratam, em sua maior parte, desse tema.

Lobato foi um grande missivista e essa atividade nos veio público por sua própria vontade quando concordou em ver publicadas, em sua editora, a Brasiliense, suas cartas enviadas a Godofredo Rangel, no citado A Barca de Gleyre. Esse livro constitui um verdadeiro testemunho da vida literária do país no começo do século XX e trata de assuntos os mais variados, mas sobretudo da formação de Lobato como leitor, escritor e editor. Depois foram aparecendo, por esforço de pesquisadores de sua vida e obra (como de Cassiano Nunes, de Fabio Lucas e de Marisa Lajolo), outras cartas, redigidas para outros destinatários, alguns tão ou mais notórios do que ele. Regina Zilberman afirma que Lobato insere-se dentro de uma tradição dos artistas e pensadores “participantes do processo de modernização da cultura brasileira”, para quem “o exercício da correspondência representava um meio tanto de difusão de idéias, quanto de consolidação de um papel doutrinário no seio da intelectualidade nacional”. 

 Já a vida editorial de Lobato, digamos assim, iniciou-se com um inquérito. Explico. Lobato foi, entre outras coisas, jornalista e escrevia para o Estado de São Paulo. Com o desejo de levantar polêmica sobre a questão do folclore e da identidade nacional, inventou uma espécie de pesquisa sobre o saci-pererê na edição vespertina do jornal, o Estadinho. A idéia era que os leitores escrevessem para o jornal respondendo perguntas e contando “causos” a respeito do “insigne perneta”. O trabalho ganhou volume e tornou-se o primeiro livro editado e lançado por Monteiro Lobato, em 1918. Nesse mesmo ano, Lobato adquire a Revista do Brasil e procura fazer dela a base para uma editora. Em julho, surge a primeira obra da editora assinada por Lobato: Urupês, na qual atuou ao mesmo tempo como escritor, organizador e editor. Justamente nesse ano, iniciava-se a correspondência entre Lobato e Lima Barreto, precedida pela publicação de um artigo deste sobre o autor paulista. Mais de uma vez, Lima externa, na correspondência trocada com Lobato e nos artigos que escreve, sua admiração e identificação com as idéias do contista de Taubaté. E Lobato, por sua vez, também sempre se identificou com o autor carioca pelo fato de se sentir da mesma forma incompreendido pela crítica.

“(...) Li hoje na Gazeta o teu artigo e sensibilizou-me muito o que há ali de compreensão. Não imaginas como apareceram e aparecem ainda artigos a meu respeito. Raríssimos, porém, dizem a palavra certa. Uns aproximam-me do que é, outros quase tocam na verdade – nenhum atinge o alvo. Tu o fizeste – deste no vinte. A incompreensão, meu caro, é o grande mal da vida, e a compreensão a coisa rara, por excelência. (...) Os críticos comprazem-se em malabarizar sobre as teorias e explicações mais difíceis, que vão procurar longe, esquecidos sempre que a verdade anda-lhes ao pé, caseira e humilde.” – diz a carta de Lobato de setembro de 1921.

Após comprovar o sucesso de vendas da publicação d’O Inquérito, Lobato pegou gosto pela atividade editorial, da qual não mais se desligou, possuindo, acerca do mundo da publicação de livros, uma visão objetiva e bastante pragmática.

É nesse momento da vida de Lobato que se inicia sua correspondência com Lima, motivada inicialmente pela admiração que sentia o escritor carioca pelo paulista. Lima, que estava encantado com as idéias de Lobato presentes em seus artigos,  publica, por sua vez, um artigo sobre a obra do autor de Taubaté e lhe escreve uma carta em fins de 1918. Lobato, que também já conhecia a obra de Lima, não perde a oportunidade de fazer negócios e aceita a edição de um livro oferecido pelo autor carioca.  É o que se lê na primeira carta de Lobato a Lima, em setembro de 1918:

“(...) A Revista do Brasil deseja ardentemente vê-lo entre os seus colaboradores. Ninhos de medalhões e pérolas, ela clama por gente interessante que dê coisas que caiam no gosto do público. E Lima Barreto, mais do que nenhum outro, possui o segredo de bem ver e melhor dizer, sem nenhuma dessas preocupaçõezinhas de toilette gramatical que inutiliza metade dos nossos autores. Queremos contos, romances, o diabo, mais à moda do Policarpo Quaresma, da Bruzundanga, etc.”

A análise da correspondência literária envolve uma atividade que poderia ser classificada como um misto entre o detetivesco e o voyeurismo. Tenho essa sensação evocada quando perscruto de maneira constante a correspondência de meu dileto escritor paulista. É como se ficasse buscando, nessas leituras, pistas para decifrar a charada: afinal, quem foi esse homem? Em que encruzilhada conseguirei montar o quebra-cabeça e compor uma idéia final sobre ele? Mas, depois, me acomete o seguinte pensamento: para que uma idéia final? Bom mesmo é ter muitos Lobatos, é poder a cada dia me surpreender com uma nova faceta iluminada por algum ínfimo detalhe.


Quanto a essa atividade de leitura da correspondência, Silviano Santiago em Suas cartas: nossas cartas tece o seguinte comentário, que, de alguma forma, serve como um bálsamo:

Ao por assim dizer violar a correspondência alheia, estamos possuídos de audácia que pode enrijecer os sentimentos dos mais sensíveis aos atos transgressores. E até petrificar os mais tímidos ao único pensamento de culpa e remorso. Os que decidimos entrar na intimidade dos correspondentes estamos tomados do fervor religioso, que alicerça nosso respeito e admiração pela obra literária de um e de outro.

Abonada, assim, em minha curiosidade, segui investigando e, nessa busca de aliar a leitura literária das cartas à obra de Lobato – e às críticas a ela feitas –, deparei-me com Marisa Lajolo (Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida) que estabelece a seguinte reflexão sobre o tema:

Cartas, campanhas e livros são alguns dos caminhos que podem nos conduzir à pessoa do escritor Monteiro Lobato. Será que conduzem mesmo? O caso é que nem todas as veredas ao longo das quais Monteiro Lobato viveu sua vida dão conta dela. Pois que caminhos dão conta da vida de uma pessoa?

Fico a refletir sobre a questão da construção da subjetividade: Onde esse eu se revela mais? De que forma ele se constrói? Há um eu verdadeiro e um ficcional? Quem é esse eu que se escreve? Uma conjunção, um entrelaçamento desses fios? Sou o que aparento ser ou meu eu é também feito daquilo que desejo ser? 

Em A correspondência entre Monteiro Lobato e Lima Barreto, a epígrafe escolhida por Edgard Cavalheiro, da autoria do Dr. Samuel Johnson, é bastante instigante e nos coloca a pensar sobre a questão do desvelamento que ocorre nas cartas: “Olhe, minha senhora: nas cartas de um homem, a sua alma aparece nua”. Será mesmo uma revelação da alma o que ali ocorre? Até que ponto a carta não traz em si o caráter da encenação?

Silviano Santiago trata dessa questão e compara a escrita de cartas à escrita de literatura. Nesta, a estilização literária, “ou seja, o fingimento, recobre, surrupia, esconde, escamoteia e dramatiza a experiência pessoal, intransferível e íntima”. As cartas, por sua vez, estão num “entre-lugar”. Ali ocorre uma dramatização da intimidade, uma escrita de si que se manifesta num processo permanente de negociações entre os missivistas.

Foucault trata desse tema em A escrita de si: Na correspondência sempre pressupomos um outro, há sempre o olhar de alguém que se projeta sobre nós. Será, então que ali nos revelamos inteiramente? Ou há um espaço para nos recriarmos em função daquilo que desejamos que o outro veja de nós?  Ou será que esse outro que nos lê é apenas uma espécie de artifício que utilizamos para nos constituirmos como sujeito?

Edgard Cavalheiro inicia seu livro fazendo um resumo que qualifico de romanceado – no bom sentido da palavra – da vida de Lima Barreto até o momento em que ele entra em contato com Lobato e da trajetória deste até os primórdios de sua vida de editor. Nessa breve biografia de Lima, é traçada com delicadeza toda a questão do alcoolismo e das internações do autor carioca, além de ser feito um pequeno inventário comentado das suas obras, tecendo elogios rasgados sobre elas. É importante ressaltar que, durante uma parte do período que abarcou a correspondência Lima-Lobato (do Natal de 1919 a 2 de fevereiro de 1920), o autor carioca esteve internado no Hospício Nacional, “o cemitério dos vivos” (para usar o termo de Alfredo Bosi em História concisa da literatura brasileira): “Mas todas as complicações que infernizaram a vida de Lima Barreto não o impediram, contudo, de produzir uma obra rica de substância humana. Ela não é muito vasta: uns 10 ou 12 volumes no máximo, mas volumes denunciadores, sem a menor dúvida, de uma poderosa capacidade intelectual”.

Cavalheiro traça uma espécie de paralelo entre os dois destinos, o do autor carioca e o do paulista. O curioso nesses destinos que se cruzam de forma epistolar – que, como em outras histórias de correspondentes “literários” –, os dois autores mal chegaram a se conhecer. Na verdade, deve ter acontecido apenas um ou dois encontros entre os dois. Nas vezes em que Lobato foi ao Rio não conseguiu estar com o amigo epistolar, como se vê neste trecho de uma carta escrita por Lobato em maio de 1920:

“Estive uns dias aí e procurei-te onde havia possibilidade de encontrar-te: freges, botequins e...casas de garapa. Cheguei a espiar embaixo de certas mesas... Mas nada do Lima. Todos informaram-me que é difícil agarrar-te à unha, que és ubíquo, e moras em Todos os Santos pró-forma etc. etc.”

As 42 cartas trocadas entre Lobato e Barreto sucederam-se com pequenos intervalos no começo, para depois se espaçarem até a última, que é de março de 1922, ano da morte de Barreto, e iniciaram-se tratando da publicação de Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá de Lima Barreto pela recém-fundada editora de Lobato. Tal livro, de certa maneira, traduz a confluência de visão dos dois escritores sobre o Brasil daquele começo de século. A respeito dessa obra de Lima, Alfredo Bosi(no já referido livro) faz um comentário que se liga  à análise aqui em curso:

Dão-se aqui as mãos, para afrontar a estagnação mental que os revoltava, Lima Barreto e o seu admirador Monteiro Lobato, embora este ficcionista menos vigoroso, não tenha atingido a vibração estilística do primeiro. A aproximação com Lobato só é possível, de resto, em termos de atitude crítica geral, antipassadista.

Apesar de discordar da avaliação feita da obra lobatiana, o que me chamou atenção foi o fato de poder-se perceber que Barreto, provavelmente, não escolheu aleatoriamente o editor desse seu livro. Havia uma consonância de idéias entre os dois companheiros de ofício e geração (Lobato e Lima eram praticamente da mesma idade: o primeiro nasceu em 1882 e o segundo, em 1881) e um nutria pelo outro admiração à distância. Tal fato aponta para a discussão da relação de aconselhamento, outra  característica da escrita epistolar. Lobato e Lima trocam opiniões sobre a crítica e a vida literária de então e comentam-se literariamente. É uma via de mão dupla que torna a relação igualitária. Ao passo que Lobato auxilia Lima a movimentar-se com desembaraço no mundo dos negócios, discutindo com ele detalhes editoriais e de pagamento de direitos, o autor carioca introduz o paulista de Taubaté nos meandros da vida boêmia, literária e até futebolística da capital federal, com comentários sempre bastante ferinos sobre os fatos e as personagens envolvidas.

“Isso dá a medida da inteligência do leitor do Rio. Há uma coisa que ele pede ao autor: posição. Austregésilo pode escrever a maior tolice, seja sobre Mecânica Celeste, ou sobre a cura da Bouba nas galinhas, que se venderá fatalmente. Haja visto o sucesso do Nilo com as suas Impressões. Além disto, uma outra coisa influi poderosamente no sucesso do livro: a tendência erótica, com uma falta total de pensamento próprio sobre as coisas e homens do meio. O leitor carioca não quer julgamento...

O leitor comum do Rio, ou a leitora, não sabe ver Amor senão no livro em que ele aparece em fraldas de camisa.” (Carta de Lima escrita em 04 de janeiro de 1919).

Ao traçar o paralelo biográfico dos dois escritores, Lima e Lobato, Cavalheiro se deteve sobretudo na estréia como escritor deste último e comenta o impacto causado pelo livro Urupês, marcando bem a diferença de momento de vida para os dois autores: Lima atravessando um momento difícil e Lobato no auge de sua consagração. Dessa forma, Lobato, naquele momento, assume o papel do mestre para Lima: um mestre de sobrevivência no mundo letrado, do qual o autor carioca se sentia muitas vezes excluído em função de sua condição, segundo ele próprio, de “mulato, desorganizado, incompreensível e incompreendido” (termos de Antonio Arnoni Prado no texto “Mágoas de perto e de longe (Lima Barreto)”). Lima, deprimido e tomado pelo vício, possuía uma caligrafia irregular e por vezes ilegível. É o autor paulista que o auxiliará na árdua tarefa de organização de seus originais.

“(...) Mandei passar à máquina o seu “Gonzaga de Sá” e lembrei-me que era preferível para você e também para nós que fizesse cuidadosa leitura e revisão da obra nesse estado. Isso evitará demora na composição, determinada pela necessidade de numerosas revisões, e não terá V. mais nenhuma maçada futura. É bom também marcar com [os começos de parágrafos e vírgulas definitivamente” – escreve Lobato escrita em 4 de dezembro de 1919.

Além disso, o criador do Jeca Tatu empresta a sua solidariedade ás idéias e amarguras vivenciadas pelo autor de Policarpo, que havia sido rejeitado pela Academia de Letras, em função do fato da reputação de sua vida urbana não “coadunar-se com a sua respeitabilidade”, segundo o próprio Lima. A esse respeito escreve Lobato em 28 de dezembro de 1918.

“(...) A Academia de Letras deve despir-se da imortalidade que se outorga para vir pegar da enxó e os carapinhas do Norte a Sul que apanham a pena. Donde concluo uma boa definição para o país: o Brasil é a terra onde o certo dá errado e o errado dá certo. Quando ouço te criticarem a vida desordenada – leio por outro lado os teus livros, firma-me a idéia supra. E cá comigo: se o ‘ordenam’, em vez de ‘Policarpos’, o Lima engorda e emudece, etc. etc.

Lobato, por sua vez, recebe nessa via de mão dupla a convivência com um fazer literário da mais alta qualidade, reabastecendo o seu próprio caminho. é o que comenta com  Rangel, numa de suas cartas de novembro de 1918:

“Fechei neste momento um romance de Lima Barreto, Isaías Caminha. É dos tais legíveis de cabo a rabo. Romancista de verdade. Amanhã vou assinar com ele contrato para a edição dum livro novo, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, cujos originais já estão aqui. A letra é infamérrima e irregularíssima. Há trechos em que o autor positivamente cambaleia, e outros em que pára para 'destripar o mico'. Mas quanto talento e do bom!”

Na edição das cartas de Lobato e Lima, Cavalheiro fez um cotejo entre os fatos narrados nas cartas e as biografias tanto de um quanto de outro, inserindo comentários e notas, num trabalho detetivesco de reconstituição dos fatos e da época em que tudo aquilo se passou.  Há, no entanto, algumas “falhas”, que poderiam ser revistas numa nova (e necessária) edição dessa valiosa correspondência. A primeira carta, que inaugura a correspondência entre o autor paulista e o carioca, redigida por este, em fins de 1918, por exemplo, não faz parte da coletânea e o motivo para essa ausência não é explicado.

Na verdade, Cavalheiro fez dessa compilação de cartas um livro híbrido – tal qual a própria epistolografia se coloca no âmbito dos estudos literários –, onde correspondência se mistura com biografia e uma encontra-se lá a serviço de complementar a outra num precioso jogo intertextual, com as mais diferentes vozes se alternando, se misturando, nessa tentativa de reconstruir o diálogo entre Monteiro Lobato e Lima Barreto.

* Este texto foi publicado inicialmente na Revista Garrafa, n. 8 de janeiro-abril de 2006.

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