Afonso Cruz
“Para uns, a raiz é a parte invisível
que permite à árvore crescer. Para mim, a raiz é a parte invisível que a impede
de voar como os pássaros. Na verdade, uma árvore é um pássaro falhado.”
― De Os livros que devoraram
o meu pai, Afonso Cruz
Afonso Cruz. Foto: Sara Matos |
Não faz muito tempo que a obra de
Afonso Cruz começou um caminho de vigorosa ascensão, mas já faz o tempo
suficiente para que os leitores deste lado do Atlântico começassem a
reivindicar a presença de sua obra entre nós. O escritor nascido em Figueira da
Foz em 1971 escreveu até agora cinco livros dotados de uma rica linguagem
poética e imaginativa, como é possível sorver nos excertos que iluminam a
abertura dessas notas. Com alguns deles, acumula alguns importantes prêmios e
boa recepção pela crítica literária no seu país.
De maneira que, com esses traços é
possível filiar o autor a uma linha criativa da literatura portuguesa marcadamente
surrealista e circunscrita no diálogo à volta de um universo cuja dimensão é desde
há muito tão ou mais importante que este chamado mundo físico que habitamos. Em
Os livros que devoraram meu pai, agora publicado no Brasil pela Editora
LeYa, repetindo o que disse José Mário Silva, a biologia é importante, mas é a
literatura que lhe dá um sentido. Neste livro, especificamente o que se lê é
uma narrativa iniciática que se faz pela viagem no interior dos livros.
Mas, antes, Afonso Cruz publicou A
carne de Deus, Enciclopédia da estória universal, livro com o qual recebeu
o Prêmio do Conto Camilo Castelo Branco, A contradição humana, A
boneca de Kokoschka e O pintor debaixo do Lava-loiças. Antes,
também, é um homem de vastas atividades pelo universo artístico: produtor de
filmes de animação, ilustrador e compositor da banda de blues roots The Soaked
Lamb, como informam os registros biográficos disponíveis no site da DGLAB/Livro
de Portugal.
Em matéria publicada no jornal Diário
de notícias, lê-se que, desde criança Afonso Cruz trocou a cidade natal
para morar em Lisboa, onde foi estudar na Faculdade de Belas-Artes. Quase todo
interesse pela criação artística se formou de alguns convívios: o gosto pelos
livros e pela literatura pelo contato com biblioteca do pai; a música porque
aos dezoito anos adquiriu uma guitarra e a partir de então foi-se tornando
competente com outros instrumentos.
A vida, de alguma maneira agitada
começa a ganhar outros contornos quando sai da capital portuguesa e vai para
Monte Novo, situado no interior do Alentejo; o retiro não significará a
instauração ―
outra vez, que a literatura já está gasta deles ― do mito do escritor recluso.
Portugal mesmo está bem-servido com o que tem: Herberto Hélder. O poeta de Os
passos em volta, um dos nomes fundamentais da poesia portuguesa do século
XX, só tem aparecido pelos livros que publica e um a um esgotam-se com uma
rapidez inusitada.
Se a obra de Afonso Cruz bebe na
fonte dos escritores de cariz imaginativo, entre esses o próprio
Herberto Hélder é figura singular e exemplar, vale entender quais linhas de
força se formam na literatura portuguesa para esse diálogo que não é, de
nenhuma maneira, simples retomada de vanguarda. Nesse sentido, ele se encontra
entre escritores como, para citar outro nome em ascensão, Gonçalo M. Tavares.
Desses nomes, que fazem uma
literatura posterior ao dia singular na história de Portugal, o 25 de Abril de
1974, dia da Revolução dos Cravos e do fim do cativeiro ditatorial no país, o
que se manifesta é o interesse pelo tempo do indivíduo, dos seus dramas
individuais, do cosmopolitismo e de uma narrativa de fruição criativa, envolvida
com o valor polissêmico da palavra, a meta-ficção e interessada nos jogos de
manipulações operacionalizados pelo leitor.
Se José Saramago é o grande nome
que estende uma linha que vem desde a tradição, de literatura de feições realistas,
é António Lobo Antunes, na mesma proporção de importância, seu paradigma, o escritor
dirige a literatura para um mundo de leis próprias, funcionando exclusivamente
pela imaginação criativa; é ele quem sombreia os escritores de agora com paixões
ampliadoras dos sem-limites da criação. Que essa riqueza se multiplique, uma
vez que a realidade, cada vez mais esdrúxula é também cada vez mais esvaziada
de sentido.
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