A descida – Variações em torno do tema
Como afirma Ronaldo Lins, em Violência e literatura, a partir do século XIX, período em que o romance atinge seu apogeu, a viagem recriada na literatura parecerá sempre uma descida aos infernos, tanto interior como exterior, indicando uma crescente incerteza nos homens ou talvez indiciando que um mundo tão cheio de certezas até aquele século, estava agora recheado de insegurança e perigos ou teria se transformado no grande espaço-incógnita de que fala Ricardo Gullón.
O tema da descida na ficção, um aspecto que envolve diretamente a maneira como determinado autor utiliza o espaço em suas obras, sob a forma de variações ou figurações da viagem aos infernos, aparece frequentemente na literatura de todos os tempos.
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O tema da descida ora assume a forma do mito de Orfeu, usando de suas habilidades musicais para comover os deuses infernais e conseguir recuperar Eurídice no império subterrâneo – e fracassando por ceder à curiosidade e quebrar a proibição, olhando para trás (para baixo?); ora assume a de Perséfone, raptada por Hades e que, voluntariamente, come os três grãos de romã – que lhe impedem de voltar ao mundo dos vivos permanentemente; ou, ainda, no percurso que Dante empreende aos infernos, cujo portal se abre ao viajante com palavras duras e definitivas: “Deixai aqui todas as esperanças, ó vós que entrais”. Os percursos de descida, apropriados à investigação que o romance sempre empreende acerca da natureza humana, refletem não só uma sofrida busca de algo ou alguém, mas também, talvez principalmente, de si mesmo, de alguma coisa externa que reflete uma inquietação interna, como o Graal, por exemplo. De qualquer maneira, em quase todos os casos citados, é a procura de um bem perdido, com personagens ansiando por uma recuperação essencial para que se restabeleça uma situação de paz ou felicidade anteriores.
Muitas vezes a descida não se configura exatamente, ou fisicamente, como tal, variando em múltiplas versões, mas sempre implica um deslocamento – em geral forçado, ou pelo menos não de todo agradável – do personagem em busca do algo que lhe falta ou foi tomado. Dessa maneira, a trajetória de Riobaldo, em Grande sertão: veredas, para efetivar seu famoso pacto com o diabo, até as Veredas Mortas – uma encruzilhada que praticamente desaparece depois do episódio –, pode ser entendida como uma descida, no sentido em que o personagem é impelido a esse encontro não só por sua vontade de se alçar à altura da chefia do bando, mas também por uma vaga noção de predestinação, e busca aí cruzar a fronteira que separa seu mundo para firmar um acordo com as forças que podem elevá-lo à condição desejada.
Por outro lado, a heroína do conto “A fuga”, de Clarice Lispector, também empreende uma descida, quando decide ir embora, no sentido em que seu casamento pode ser visto como a estabilidade, a segurança, o conforto, mesmo que falte a isso tudo o amor e o sonho, e o lá fora seja o espaço-incógnita, onde ela deverá emancipar-se (reconhecer-se?); a personagem perde a oportunidade de escapar de um casamento/prisão, pois ousa olhar para trás – como Orfeu –, e sua vontade e determinação se arrefecem.
Em Dom Casmurro, é natural que Bentinho sinta-se rejeitado ao voltar para a casa da infância, descendo em direção às recordações de tempos tranqüilos e em que o amor por Capitu ainda não se transformara em um ciúme doentio. Aquele antigo locus amoenus transformara-se num espelho de sua própria consciência culpada por ter destruído o mundo de sonhos da infância, como analisa Lúcia Miguel Pereira, e Bentinho deixa que a casa seja demolida, numa espécie de autopunição, reproduzindo-a depois, de certa maneira, purgada das lembranças, em outro bairro da cidade.
Queda significativa também protagoniza Madalena, em São Bernardo, de Graciliano Ramos, quando acredita, e declara, que a proposta de casamento que recebera era um “negócio vantajoso” para os dois, e aceita Paulo Honório, indo morar na fazenda que dá nome ao romance. Esse percurso, como se sabe, acaba em suicídio. Se ela consegue escapar da teia de posse que Paulo Honório urdiu em torno dela, o gesto não a eleva literariamente, pois ela parece optar pela saída teoricamente mais fácil (já que poderia voltar à vida simples, mas difícil, de antes) e egoísta (pois seu ato lança a tia no convívio solitário com a crueldade de Paulo Honório). A trajetória de Paulo Honório também poderia ser descrita como uma penosa ascensão seguida de queda melancólica, pois sua ambição o leva a conseguir a fazenda São Bernardo por meios escusos e, transformando a todos à sua volta em coisas manipuláveis e compráveis, abre caminho para a destruição de Madalena e a sua própria, da qual tenta recuperar sentidos por meio de sua narrativa. Aliás, esse personagem-narrador não se redime, com sua narrativa, da desgraça que causou ou sequer compreende sua responsabilidade em tudo, pois repete no próprio processo de construção da história a reificação das pessoas que ainda o rodeiam.
Uma travessia que também assume o caráter de início de uma longa descida aos infernos, que será a obsessão do personagem por um amor impossível, é a viagem de gôndola que Gustav von Aschenbach, em Morte em Veneza, de Thomas Mann, prestes a mergulhar numa busca impossível – pela beleza ou pela perfeição –, empreende ao chegar a Veneza, conduzido por um gondoleiro comparado, por Ronaldo Lima Lins, com o próprio Caronte.
Uma descida literal é aquela de que é vítima Augusto Matraga, no conto “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa. Após ser surrado por vários homens em virtude de sua arrogância, valentia desmedida e crueldade, o personagem é jogado em uma ribanceira, começando ali um longo período de sofrimento físico e mental, até conseguir reerguer-se e se redimir ao final do conto.
Descidas significativas e exemplares também são figurativizadas no percurso de dois grandes heróis bíblicos, José e Jesus Cristo, se tomarmos aqui a Bíblia no sentido literário empregado por Flávio R. Kothe em O herói. A trajetória extremamente penosa desses dois personagens mostra, por outro lado, que nem sempre o que está embaixo é ruim, pois ambos sofrem intensa humilhação seguida de ascensão redentora.
Nota:
Fragmento do artigo “Variações em torno do mesmo tema: a descida”, do professor José Alonso Torres Freire (UFMS). Para ler o artigo na íntegra acesse aqui.
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