Cafés, bondes e carnavais
Por Pedro Fernandes
O título é da professora Elisa Amorim Vieira, texto que faz um registro marcante da cidade literária construída por Machado de Assis. Não só sobre a cidade machadiana, mas sobre o olhar do escritor acerca da efervescência urbana em seu tempo. Retomando a ideia do flâneur Vieira lê Machado de Assis, por através de suas crônicas, como legítima figura do tipo, interligando o dia-a-dia do Rio de Janeiro do século XIX ao espaço mais amplo da tradição literárias ocidental.
Nas crônicas, Machado comenta das inovações tecnológicas, das mudanças de costumes, das transformações da cidade. Apesar de não fazer par com Cruz e Souza e nem com as figuras da boemia carioca, Vieira, ao citar o estudo da professora Mônica Velloso, Modernismo no Rio de Janeiro, considera o Bruxo do Cosme Velho, pelos olhos atentos aos impactos das mudanças, tão imerso quanto àqueles, que vivenciaram com maior sentimento de desencanto e de esperança (podemos assim dizer)os fluxos da cidade.
Dos boêmios, por exemplo, Machado compartilha o humor, traço essencial da modernidade carioca: "A mesma atitude satírica que, no caso dos boêmios, contraria a idéia moderna do espaço segmentado entre café/escritório, tempo de lazer/tempo de trabalho, arte/vida, levaria a crônica machadiana a misturar acontecimentos mais corriqueiros aos temas de prestígio da modernidade. Enquanto os boêmios transformam os cafés em sucursais da Academia Brasileira de Letras ou em ambiente de trabalho, o cronista utiliza as páginas dos jornais para nivelar a pretensa seriedade do espírito positivista à futulidade da sociedade carioca do seu tempo." (p.77).
Deixo a seguir um trecho de uma crônica de Machado de Assis, datada de 15 de março de 1877, quando da inauguração dos bondes elétricos do bairro de Santa Teresa, e que a professora Elisa Amorim cita como exemplo de reflexão do escritor acerca da transitoriedade do tempo, dos costumes e valores da sociedade oitocentista presa no contraste entre o arcaico meio de transporte (as diligências que eram puxadas por burros) e os modernos bondes elétricos.
Escusado é dizer que as diligências viram essa inauguração com um olhar extremamente melancólico. Alguns burros, afeitos à subida e descida do outeiro, estavam ontem lastimando esse novo passo do progresso. Um deles, filósofo, humanitário e ambicioso, murmurava:
- Dizem: les dieux's en vont. Que ironia! Não; não são os deuses, somos nós. Les ânes s'en vont, meus colegas, les ânes s'en vont.
E esse interessante quadrúpede olhava para o bond com um olhar cheio de saudade e humilhação. Talvez rememorava a queda lenta do burro, expelido de toda a parte elo vapor, como o vapor o há de ser pelo balão, e o balão pela eletrecidade, a eletrecidade por uma força nova, que levará de vez este grande trem do mundo até à estação terminal.
O que assim não seja.... por ora.
A cidade machadiana, irá concluir Vieira, não se perde numa paisagem fixa, mas adere a um movimento frenético conduzido pelos jogos entre tradição e modernidade. É uma cidade construída aos retalhos que, por sua vez, engendra novas imagens num movimento ad infinitum que aproxima-se do caos da cidade cotidiana.
Nota: Leia Café, bondes e carnavais, da professora Elisa Amorim Vieira, na íntegra (em PDF) acessando aqui.
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