Benedito Nunes


Benedito Nunes. Foto de Luiz Braga. Fonte: Revista Brasileiros

Nota: Defini-lo como autodidata como tenho lido nos poucos espaços que se sensibilizaram com a morte do professor Benedito Nunes é insuficiente, afinal todo intelectual tem em sua natureza o autodidatismo; já não é, portanto, um elemento que o isole em diferença dos demais. Não fosse isso não seriam intelectuais. Mas hoje li um texto na Revista Brasileiros, edição 25, de 2009, cujo link encontrei no mural do Facebook disposto pelo meu companheiro de rede social Cristhiano Aguiar, que rende a justa homenagem a este homem que partiu ontem de mãos dadas com Moacyr Scliar; reproduzo parte a seguir:

Benedito Nunes, o iluminista dos trópicos

Por Adriana Klautau Leite

Em um de seus encontros com Benedito José Viana da Costa Nunes, em Belém do Pará, Clarice Lispector lhe disse: “Você não é um crítico, mas algo diferente, que não sei o que é”. A escritora tinha razão ao demonstrar a dificuldade em rotular a obra do paraense que, nas palavras do professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de São Paulo, Antonio Cândido, representa um tipo muito raro de intelectual, capaz de ser “um grande crítico literário e, ao mesmo tempo, um filósofo”.

Nascido em 21 de novembro de 1929, o professor, filósofo, crítico e ensaísta Benedito Nunes define seu trabalho como “um tipo mestiço das duas espécies, a filosofia e a literatura”. “Tento, dessa forma, fazer a ligação entre os dois campos, porém sem nivelar ou diminuir um ou outro, mas mostrar as suas correlações, afinidades e oposições”, diz Nunes, que está bem perto de comemorar 80 anos de vida, mas de preferência em silêncio, no lugar em que mais gosta de ficar, sua biblioteca, sentindo o perfume dos livros. “Não gosto de parabéns, acho horrível, cafona.”

Considerado um dos maiores pensadores do Brasil, Nunes se classifica como “um autodidata e eterno aprendiz, sempre em busca de novos olhares”. Durante sua da carreira, especializou-se em analisar obras de grandes escritores, como Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Jean-Paul Sartre e Martin Heidegger. Por seu trabalho intelectual, recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura em 1987 (na categoria Estudos Literários, com Passagem para o Poético – Filosofia e Poesia Heidegger), pela Câmara Brasileira do Livro, e o título de Professor Emérito da Universidade do Pará, em 1998.

Apesar de ter sua obra reconhecida e elogiada por muitos, Nunes sempre foi avesso a grandes badalações, preferindo ficar recluso em sua terra natal, o que talvez explique o fato de seu nome não ser tão conhecido nacionalmente. “Belém é meu canto. Sou um pouco animal, gosto da minha toca. Belém é minha concha existencial, sempre foi.” A maneira que o paraense escolheu para viver o diferencia da maioria dos intelectuais. “O mais notável é que Benedito Nunes pertence a um tipo muito característico de intelectual brasileiro: o que não renuncia à sua província. Ele é um pioneiro ao acreditar que os núcleos de conhecimento devem ser desenvolvidos em vários pontos do Brasil, em várias universidades, em vez de se concentrar apenas nas faculdades famosas”, afirma o crítico Antonio Cândido.

De família de intelectuais, Nunes nasceu um mês depois da morte de seu pai, o bancário Benedito da Costa Nunes. O filósofo aprendeu o abecedário no Colégio Sagrado Coração de Jesus, que funcionava dentro da sua própria casa, onde tinha aulas com a professora Theodora da Cruz Vianna, a Dodô, uma de suas cinco tias. “Era um ‘coleginho’ muito bem frequentado, pessoas ilustres passaram por lá”, relembra.

Ainda menino, Nunes ganhou seu primeiro livro das mãos de um mendigo, A Caçada da Onça, de Monteiro Lobato (editado pela primeira vez em 1924). “O livro foi-me presenteado por um mendigo já idoso, barba branca, que às quartas-feiras pela manhã vinha buscar a sua esmola certa dada por minhas tias, que o achavam parecido com a tradicional imagem de São José carpinteiro, reverenciado no oratório de nossa família.”

Foi também em sua própria casa que Nunes, além de aprender o ABC com as tias, teve contato com os primeiros e fiéis amigos, todos bem empilhados numa estante em madeira amarela envernizada: Machado de Assis, José de Alencar, Eça de Queiroz, Shakespeare, Monteiro Lobato, Joaquim Nabuco, Oliveira Viana, Lima Barreto, Taunay, Afrânio Peixoto, Dante, Assis Cintra, Oliveira Lima, Antônio Torres, Mario Pinto Serva e Alberto Torres. “Lia Monteiro Lobato e Mogli, o Menino Lobo, entre outros amigos da estante amarela, que vez ou outra eram preteridos por amigos mais visuais, os gibis. O Fantasma Voador era meu grande herói”, conta.

Em 1942, Nunes, então estudante do Colégio Moderno em Belém, participou, ao lado de Haroldo Maranhão, colega de escola, da criação da “Academia dos Novos” – sociedade inspirada na Academia Brasileira de Letras -, que reunia os apóstolos do parnasianismo e dos clássicos portugueses. A sede da academia era a mesma “casa das tias”, sua residência. Fiel à sociedade, nunca aceitou o convite para ingressar em alguma outra academia. “Trata-se de uma questão de fidelidade, afinal fui sócio-fundador da Academia dos Novos aos 13 anos”, brinca, para concluir: “Já sou imortal. A imortalidade, como se sabe, é indivisível”.

Ainda muito jovem, Nunes escreveu suas primeiras críticas e poesias como colaborador do suplemento literário “Arte e Literatura”, do jornal Folha do Norte, fundado e dirigido por Haroldo Maranhão, que vigorou até 1951. “Era um suplemento local, porém de amplitude nacional. Carlos Drummond de Andrade, Raquel de Queiroz, Manuel Bandeira e Cecília Meireles, por exemplo, escreviam especialmente para ele”, recorda.

Desde cedo, Nunes já pensava em estudar filosofia, de preferência em São Paulo, mas acabou ingressando na Faculdade de Direito do Pará. Boa lembrança do curso, porém, ele só tem uma – os alegres bate-papos nos corredores da faculdade com Maria Sylvia, com quem se casou e convive até hoje. No mesmo ano de sua formação em Direito, em 1952, recebeu um convite irrecusável da amiga e professora Anunciada Chaves para lecionar Filosofia no Colégio Moderno. “Minha formação filosófica deu-se por um autodidatismo sistemático e metódico”, diz. “Na época, lia Hegel durante meses, toda a Fenomenologia do Espírito, a Filosofia da História, etc. Passava em seguida para Husserl, lia as Idéias para uma Filosofia Fenomenológica, as Investigações Lógicas… Eu ia anotando tudo em cadernos. Também li sistematicamente Heidegger”, conta.

No período em que ainda dava aula de filosofia em Belém, Nunes deixou sua terra natal para acompanhar sua mulher em uma romântica viagem de navio a Paris, na primeira classe, um prêmio dado à Maria Sylvia pela montagem de uma peça de teatro (Édipo Rei), vencedora de um festival universitário realizado em Santos (SP). O casal acabou vivendo por seis meses na França e Nunes aproveitou esse período para aperfeiçoar o conhecimento em filosofia, fazendo cursos na Sorbonne, com Paul Ricoeur, e no Collège de France, com Merleau-Ponty, um dos maiores filósofos do século XX.

De volta ao Brasil, o professor paraense encontrou na filosofia – e nas teorias de Heidegger, Kierkegaard, Jean-Paul Sartre, entre outros – suporte teórico para lançar o seu primeiro livro, O Mundo de Clarice Lispector, em 1966, editado pelo governo de Manaus, com prefácio de Arthur Cézar Ferreira Reis. Foram ensaios seus publicados no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo sobre quatro obras da grande escritora: Perto do Coração Selvagem, Laços de Família, A Maçã no Escuro A Paixão Segundo G.H. Esses mesmos textos foram editados, mais tarde, sob o título “O mundo imaginário de Clarice Lispector” na obra O Dorso do Tigre (1969). Dona Clarice, como gosta de chamá-la, aliás, passa a ser a principal fonte de inspiração do crítico. “Eu me ‘claricizei’ lendo os livros de Clarice, porque me impressionei por uma singularidade que há nos livros dela, a partir do primeiro, se acentuando no último, A Paixão Segundo G.H., que é uma estranheza diante da vida, até se tornar uma coisa orgânica, impossível”, afirma.

Ainda na década de 1970, o crítico foi convidado pelo professor Antonio Cândido para contribuir para uma coleção de livros, chamada Buriti. Surgem, assim, dois livros: Introdução à Filosofia da Arte (1966) e A Filosofia Contemporânea (1967). Porém, Nunes considera o livro O Dorso do Tigre sua primeira obra propriamente dita. “Introdução à Filosofia da Arte e A Filosofia Contemporânea são livros de ensaios, foram livros encomendados, mais didáticos. Por sua vez, O Dorso do Tigre foi o primeiro livro que organizei sozinho, que inventei o título, que fiz da minha cabeça, ninguém me encomendou”, diz. Nesse livro, analisa a simbiose que ocorre entre literatura e filosofia promovida por Clarice Lispector, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Fernando Pessoa. “Um flanco do Dorso é literatura, o outro, filosofia. Se você escorrega para um lado, cai para literatura, se escorrega para o outro, cai para filosofia. Você tem de ficar no equilíbrio, sem cair pra lado nenhum”, afirma o crítico.

Contudo, Nunes diz que o livro que mais lhe deu prazer em escrever foi O Tempo na Narrativa. “Fui descobrindo coisas enquanto eu escrevia o livro….” Os meus melhores, entretanto, são os mais difíceis, os mais chatos, isto é, os de filosofia, que sempre são elogiados por serem bonitos, mas difíceis”, diz o professor, referindo-se à obras como Heidegger e Ser e Tempo. Para Nunes, porém, a transferência dos seus conhecimentos filosóficos por meio dos livros não bastava. Por isso, em 1975, criou um projeto para a criação do curso de filosofia, mais tarde incorporado à Universidade Federal do Pará (UFPA), onde o crítico se aposentou como professor titular. “Não havia curso de filosofia, mas sim matérias filosóficas que faziam parte do curso de pedagogia”, diz.

Benedito, um baixinho de apenas 1,60 m de altura, é um homem de hábitos simples. Só come quatro frutas – banana, morango, abacate e abacaxi -, adora soverte de açaí, queijo com goiabada, pirarucu de casaca, e não dispensa a caminhada matinal pelo Bosque Rodrigues Alves. Ao entrar em sua residência, rodeada de verde, árvores frutíferas, jasmineiros e bonsais, tem-se a impressão de estar em uma casa de campo, um ambiente que mistura o cheiro de mato com o de livros antigos. Com sua fala mansa, o professor conta suas histórias enquanto anda pela casa, muitas das vezes assoviando. Por todos os lugares, há muitas fotos – dele com Maria Sylvia, dos amigos, de ex-alunos, dos cachorros e dos gatos.


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