As cidades invisíveis

Por Pedro Fernandes



“Sem pedras o arco não existe”

Ítalo Calvino, As cidades invisíveis


Escritores como Jorge Luis Borges e Italo Calvino elegeram como “ideal” o romance complexo, labiríntico, capaz de enredar-se por vias múltiplas, capaz de dar conta da diversidade de sujeitos, suas vozes e posições. Um romance como uma extensa rede aberta e infinita, capaz de abarcar na sua estrutura uma diversidade de saberes e códigos. O que ambos escritores perceberam é que todos somos sujeitos situados numa extensa rede e o romance, enquanto “materialização” do real sensível, haveria de se comportar, nesse meio, como um inventário enciclopédico. Isto é, haveria o romance de abarcar em suas fronteiras a complexidade dessa extensa rede que estamos inseridos; o romance como um suporte para a atuação de diversos universos.

Essa idéia de um hiper-romance, bem como a idéia de rede parece ser incorporada por Calvino, só para citar um exemplo, em “As cidades invisíveis”. A obra é composta pela diálogo entre Marco Polo e Kublai Khan, ambos já personagens de outro livro, este de Marco Polo, “O livro das maravilhas”. Figurando como um embaixador de Khan, Polo vai lhe enredando as mudanças do império mongol, projetando em Khan uma rede imaginária e deslizante pontuada por nós femininos – as cidades Anastácia, Diomira, Despina, Isidora, Tâmara, Zaíra, enfim um catálogo extenso de lugares e histórias que se metamorfoseiam e prolongam-se ao infinito. São cidades “destopográficas”, abertas, em constante estágio de mudança, fazendo me recordar aqui aquela ilha de Laputa onde vai parar Gulliver numa de suas viagens no romance de Swift.

O que eu quero aqui, ao retornar ao pensamento desses dois escritores acerca do romance e ao romance de um deles, é recortar a idéia de “rede” para pensar sobre os novos mapas e espaços criados pela proliferação das redes virtuais. Se a relação parece um pouco distante, não sei. Deixe que eu trace meu itinerário para que no fim possamos encontrar os dois pontos.

As redes fundam as bases do pensamento contemporâneo. Parece que as longas observações feitas pelo homem para os detalhes da natureza, fizeram ele formular um entendimento de que as redes constituem um padrão responsável pela harmonização e organização de todos os sistemas e seres. As redes tecem, cruzam, entrecruzam, interseccionam-se e desencadeiam novas conexões para se restituírem a sequência do tecer-cruzar-entrecruzar-interseccionar num processo ad infinitum. É da descontinuidade desses movimentos que se formam ou se alicerçam novas dimensões do pensamento e se compõem novos sistemas mais sofisticados do que aqueles que o antecederam. Trata-se de um conjunto de relações da qual toda a vida é interdependente.

Também constituem-se redes as comunicações. Estas se formam no embate ou nos nós dos sentidos e dos pensamentos e geram pensamentos e sentidos novos. As redes também se constituem de fios diversos que, em constante processo de atuação, estabelecem, por via de uma interação, a aproximação entre os sujeitos e a construção de sistemas sociais complexos. Isso posto, é possível estabelecer o entendimento aqui, de que, o advento das redes sociais no meio virtual, levando-se em conta os arquipélagos comunicativos que ali se formam e o compartilhamento de aptidões, valores, pensamentos, explicações, crenças, são uma resposta positiva frente ao potentado do individualismo levado até os limites pelo advento do atual modelo de sociedade. As redes virtuais se constituem em grandes espaços onde os sujeitos partilham modos de ser e se, de um lado, elas se constituem em modos de engendrar novas formações comunicativas e sociais, de outro, elas conferem aos sujeitos, enquanto membros dessa extensa estrutura rizomática, novos modos identitários, estes, não-hegemônicos, não-individualizados, mas migrantes, compartilhados, em constante vi-a-ser.

Esse novo conjunto de relações e o surgimento de megalópoles virtuais pode ser encarado com uma rede que, dentro em breve, levará a uma reorganização das estruturas sociais. Ainda não sabemos, por mais que nos esforcemos que futuro será esse: se estaremos mais dispostos à retomada dos modos “primitivos” das relações pessoais ou se estaremos cada vez mais isolados, levando o meu argumento anterior a ser repensado. O fato que as tais redes sociais se constituem hoje numa organização complexa, cujas trocas simbólicas, os processos de construção e partilhamento de estágios comunicativos, engendram relações que não se prendem ao determinismos e unilateralidades. Trata-se de uma forma de uma organização arquitetônica equilibrada numa diversidade de pilares, que ao mesmo tempo que relativizam as dicotomias são suportes a sistemas ambivalentes, de significados múltiplos. Os points de encontro para a organização de movimentos políticos, artísticos, etc. não mais comungam com a ideia de coletividade fechada, mas policéfala, segmentada. Já não dá, por esse caminho, para se pensar nas redes sociais como um movimento na maré contrária do individualismo. Cada sujeito é uma célula autônoma e sua fixação em centros virtuais não garante mais a coesão física das relações humanas “primitivas”. Coletividade e individualismo pessoal parecem se firmar, nesses espaços, como algo inseparável.

As travessias por esse universo outro igualam-se às travessias de Marco Polo e Kublai Khan nas “cidades invisíveis” de Calvino. Se o romance abarca fronteiras plurais na sua construção, as redes sociais também. Aqui e lá o império é descentrado, em estado constante de ruína, nascendo, inesperadamente desse estado, outros espaços. Os mapas subjetivos e físicos são redesenhados numa superfície aquosa – se movimentam e se reordenam simultaneamente. Tais deslizamentos característicos de toda rede nos instaura o entendimento de que todas as construções, inclusive essa realidade supostamente palpável, são maleáveis e efêmeras. Os espaços virtuais levam-nos a refletir sobre a própria perecebilidade das relações físicas cujo estágio de declínio é a constante que nos une nas relações “primitivas” e nas contemporâneas. As relações físicas são também, como nas relações virtuais, produzidas num constante rearranjo, numa infinita rede de deslocamentos, num extenso jogo de invenção e reinvenção de modos de ser sujeito. “As cidades invisíveis”, como as cidades virtuais, nos levam a acompanhar a transitoriedade dos espaços e as movências dos mapas físicos e subjetivos. Nesse itinerário, deslocamo-nos todos, afinal, as redes textuais, como as redes virtuais também desenham “destopografizações” cidades e mapas em constante estágio de mudança.

* Texto publicado no Jornal Correio da Tarde, no dia 27 de janeiro de 2011.

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