A arte de fazer livros

Por Pedro Fernandes




Sem propagandas, mas nós leitores sabemos que os livros produzidos pela Cosac Naify têm algo além dos preços assombrosos: o esmerado zelo na composição das publicações que nos entregam. Em alguns casos, são quase livros-arte. É talvez a primeira vez que algo assim sofisticado, continuamente, se pratica no nosso pequeno e maltrapilho mercado editorial. Até quando durará? Isso não sabemos, mas devemos aproveitar. 

A nova publicação da casa é um exemplo do que dissemos e um convite ao deleite. Editaram simplesmente um livro-chave para a literatura moderna e de vanguarda na Argentina e na América Latina: Museu do romance da eterna, do escritor argentino Macedonio Fernández. E para um desses livros inclassificáveis, a editora propôs um projeto editorial semelhante. Antes, alguns detalhes do romance e depois olhamos a sua primeira edição brasileira.

Macedonio Fernández nasceu no dia 1.º de junho de 1874, em Buenos Aires, cidade onde viveu até 10 de fevereiro de 1954. Seu percurso pela literatura foi errático: tudo o que escreveu ou não foi publicado ou saiu primeiro em jornais e revistas. Tanto que, os seus primeiros livros só começaram a vir a público quando contava 54 anos; eram uma reunião de textos esparsos: No toda es vigilia la de los ojos abiertos e Papeles de Recienvenido

Sua obra-prima, Museu do romance da eterna, foi escrita ao longo de 48 anos. Ou seja, foi a obra de uma vida inteira, continuamente anunciada e continuamente postergada. Tanto que a primeira edição só se publica quinze anos depois da sua morte, sob a organização do filho, Adolfo de Obieta, a partir de uma versão deixada por Macedonio quatro meses antes do fatídico fevereiro de 1954. 

Tamanho empenho em adiar reflete-se na própria estrutura do romance, que é, antes a possibilidade, ou a caixa de máquinas de uma obra do gênero. O escritor transfere para o objeto literário sua forma de postergar, ou como qualifica o Joca Reiners Terron, sua forma de enrolar: “Macedonio Fernández era um enrolão, o procrastinador-mor. Desse talento para a postergação, criou uma arte ou, talvez, uma estética muito particular da arte. Enrolando, postergando, chegou à posteridade”. É o que escreve o autor de Do fundo do poço se vê a lua no comentário sobre Museu... para o jornal Folha de São Paulo

Jorge Luis Borges conviveu ativamente com Macedonio, que antes, fora muito próximo do pai, o também escritor Jorge Guillermo Borges. E o romance traduzido no Brasil pela primeira vez quase quarenta anos depois da edição argentina fez escola; influenciou a literatura de nomes como o próprio Borges, mas também Julio Cortázar, Juan José Saer, Ricardo Piglia, ou fora do seu país, a literatura do uruguaio Mario Levrero. 




O desafiador trabalho de tradução é da professora Gênese Andrade, uma leitora atenta da literatura de vanguarda modernista no Brasil. O livro agora publicado traz uma apresentação do também escritor argentino, Damián Tabarosvky — isto é, o zelo da Cosac Naify se repete ainda quando o assunto é oferecer um bom conteúdo, ou o que chamaríamos de livro de referência.

O livro reitera aquilo que traz no título. Se considerarmos o museu um arquivo, este é uma espécie de espaço aberto às múltiplas possibilidades textuais. Composto quase integralmente com prólogos que ora esclarecem motivos, personagens, ora discute sobre o que é um romance, propõe uma estética, ora ainda especula variações da escrita; Museu... possui poucos capítulos com possibilidades de enredo, como a busca por Eterna, a mulher de matiz bretoniano; e finda com observações gerais de recepção do livro. Quer dizer, estamos diante de uma obra que se realiza propondo o que seria a própria obra. 

Para um livro tão peculiar, uma identidade visual a altura, buscando diálogo com a forma e estrutura propostas por Macedonio Fernández. Começamos a acessar seu conteúdo desde a capa, feita com fragmentos dos fragmentos que dão forma ao romance. Nela estão estampadas frases espirituosas em que o escritor homenageia o Leitor de Capa, e sentencia que “capas-livros” são “a única esperança de um grande raio de ação da brilhante Literatura”.

O desenho da primeira parte do livro, a dos prólogos, refaz o inacabamento: as páginas são numeradas irregularmente e o material textual se desloca em quadros que obedecem a duração de cada fragmento; é o mesmo princípio gráfico para os epílogos, a continuidade do livro depois do FIM. Escapa dessa aparente desordem os vinte capítulos do enredo.  

“Partindo de um conteúdo tão específico e excêntrico, o projeto gráfico desta edição se propôs a interpretar algumas das digressões do autor sobre seu próprio livro. O volume, portanto, tem um aspecto inacabado: sem o refile lateral as páginas são sutilmente irregulares, lembrando uma pilha de papéis soltos e dificultando o folhear do leitor apressado.” 

O livro é um objeto que se faz completamente preenchido por texto, de ordem diversa (como é o romance macedoniano); da passa-se à guarda e ao miolo sem qualquer respiro, sem as convencionais páginas de rosto, falso rosto, sumário etc. acompanhando ainda a dinâmica desenvolvida pelo escritor: “Espero que o meu Editor não me exponha ao ridículo inserindo [no livro] folhas em branco [...]. Se há Crítica para o escrito, faço a do em branco [...]. Repudio como falsas todas as páginas brancas que se publiquem aqui como originais de minha assinatura [...]”.

Quem explica todo esse processo é a diretora de arte da Cosac Naify e responsável pelo projeto, Elaine Ramos, que numa post para o blog da editora fala como o livro foi produzido e o porquê desse estilo que faz dele artefato de brincar. No mesmo blog também é possível ler um texto-resenha para a obra composto por Damián Tabarovsky.

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