A 18, encontro com José Saramago (VIII)
Inciativa posta na rede desde o dia 18 de julho de 2010; todo 18 de cada mês durante nove meses leitores saramaguianos do mundo inteiro reúnem-se para ler um fragmento de sua obra e brindá-lo com uma taça de vinho. Este blog segue a iniciativa.
Aproveitando os últimos acontecimentos no Egito e em outros países para o fim das ditaduras, a Fundação José Saramago, mentora dessa iniciativa de leituras da obra saramaguiana propõe a leitura de o Ensaio sobre a lucidez. Uma série de episódios desse romance são de uma precisão e riqueza simbólica muito forte - desde o voto branco, passando pelos episódios de retirada dos políticos, as luzes acesas da cidade... O fragmento que cito hoje, é esse:
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O plano de retirada a que finalmente se chegou era uma obra-prima de acção táctica, consistindo basicamente numa bem estudada dispersão dos itinerários com vista a dificultar ao máximo con-centrações de manifestantes acaso mobilizados para expressar o desgosto, o descontentamento ou a indignação da capital pelo abandono a que ia ser votada. Haveria um itinerário exclusivo para o chefe do estado, mas também para o primeiro-ministro e para cada um dos membros do gabinete ministerial, num total de vinte e sete percursos diferentes, todos sob a protecção do exército e da polícia, com carros de assalto nas encruzilhadas e ambulâncias na cauda dos cortejos, para o que desse e viesse. O mapa da cidade, um enorme painel iluminado sobre o qual se trabalhou arduamente durante quarenta e oito horas, com a participação de comandos militares e policiais especializados em rastreios, mostrava uma estrela vermelha de vinte e sete braços, catorze virados ao hemisfério norte, treze apontando ao hemisfério sul, com um equador que dividia a capital em duas metades. Por esses braços se haveriam de encanar os negros automóveis das entidades oficiais, rodeados de guarda-costas e olqui-tolquis, vetustos aparelhos ainda usados neste país, mas já com orçamento aprovado para modernização.
Então, ó surpresa, ó assombro, ó prodígio nunca visto, primeiro o desconcerto e a perplexidade, depois a inquietação, depois o medo, filaram as unhas nas gargantas do chefe do estado e do chefe do governo, dos ministros, secretários e subsecretários, dos deputados, dos seguranças dos camiões, dos batedores da polícia, e até, se bem que em menor grau, do pessoal das ambulâncias, por profissão habituado ao pior. À medida que os automóveis iam avançando pelas ruas, acendiam-se nas fachadas, umas após outras, de cima a baixo, as lâmpadas, os candeeiros, os focos, as lanternas de mão, os candelabros quando os havia, talvez mesmo alguma velha candeia de latão de três bicos, daquelas alimentadas a azeite, todas as janelas abertas e resplandecendo para fora, a jorros, um rio de luz como uma inundação, uma multiplicação de cristais feitos de lume branco, assinalando o caminho, apontando a rota da fuga aos desertores para que não se perdessem, para que não se extraviassem por atalhos. A primeira reacção dos responsáveis pela segurança dos comboios foi pôr de lado todas as cautelas, mandar pisar os aceleradores a fundo, dobrar a velocidade, e assim mesmo se começou por fazer, com a alegria irreprimível dos motoristas oficiais, os quais, como é universalmente conhecido, detestam ir a passo de boi quando levam duzentos cavalos no motor. Não lhes durou muito a correria.
Comentários
Beijos, parabéns Pedro e bom final de semana.