Encontros como Mia Couto
Por Pedro Fernandes
Toda a vida acreditei: amor é os dois se duplicarem em um. Mas hoje sinto: ser um é ainda muito. De mais. Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada. Ninguém no plural. Ninguéns.
Mia Couto, O fio das missangas
Abaixo copio o poema central de Raiz de orvalho e outros poemas:
Mia Couto. Foto: Bel Pedrosa. |
Toda a vida acreditei: amor é os dois se duplicarem em um. Mas hoje sinto: ser um é ainda muito. De mais. Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada. Ninguém no plural. Ninguéns.
Mia Couto, O fio das missangas
É assim que uma das personagens narradoras finda "A despedideira", de O fio das missangas. Conheci Mia Couto sendo poeta com o livro Raiz de orvalho e outros poemas. E devo essa descoberta a uma amiga que, num desses congressos, tinha consigo uma leitura da poesia do escritor moçambicano. Li, daí alguns poemas; reencontrei outros depois, numa aula de literatura no mestrado e muito tempo depois encontrei com Terra sonâmbula, ainda o único e melhor romance do escritor. Tenho impressão de que, depois desse título dificilmente ele conseguirá escrever outro romance a altura; apesar de ser muito cedo para fazer essa afirmativa. Mas, o contato com outros romances seus permite-me essa previsão: Mia, diferente de escritores como José Saramago, por exemplo, é dos escritores de um livro. Depois, muito depois, fui me encontrar com esse livro de contos O fio das missangas. E conhecendo o poeta, o romancista e o contista que digo, Mia Couto me permanece poeta. Não há como negar que sua prosa é invadida por um lirismo que leva o leitor a pairar dias remoendo uma frase que se destrinçada daria outro texto, certamente.
Talvez justamente por perseguir a ideia de um grande romance, um que sintetize sua escrita, que o escritor, dono de extensa e considerável obra, tenha se tornado um dos maiores escritores moçambicanos que tem livre fluxo pelo cenário das literaturas de língua portuguesa. Admirador de Guimarães Rosa, obra do qual nota-se toda sua verve de influências na sua literatura e de quem herdou a paixão por contar histórias, a obra em prosa de Mia prima pelo fluxo da oralidade e a invenção de uma linguagem própria, catada entre os vários dialetos de seu país.
Além de Guimarães Rosa, Mia se diz admirador de outro brasileiro: Jorge Amado. Este foi o primeiro escritor brasileiro que diz ter andado a ler, segundo deixou dito na sua participação no II Festival Literário da Pipa, dele herda a paixão pelo prosaísmo do cotidiano. Depois desse depoimento tive curiosidade de buscar alguma ressonância do baiano na obra de Mia; confesso que não encontrei. A questão deve ser respondida pelo que Jorge representou para os da geração do escritor moçambicano. A forma como o brasileiro redesenhou pela literatura a alma de um povo, do romancista que revelou o Brasil que há no Brasil, deve ter servido e muito no processo de questionamento e reencontro com sua própria nação. Moçambique, sabe-se, passou por um longo e trágico período de colonização.
Bom, além de Terra sonâmbula (2007), já foi publicado de Mia Couto no Brasil, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003), O último voo do flamingo (2005), O outro pé da sereia (2006), O gato e o escuro (2008), Venenos de Deus, remédios do diabo (2008), Antes de nascer o mundo (2009), todos editados pela Companhia das Letras. Depois dos romances, há o Mia contista de O fio das missangas (2009), Estórias abensonhadas (2012), Vozes anoitecidas (2013) Cada homem é uma raça (2013). Nos próximos anos, espera-se mais: há a poesia e muitos outros livros de contos que ainda não circulam por aqui.
O autor nasceu em Beira, Moçambique, em 1955. Formou-se em biologia. Já recebeu uma leva de prêmios significativos, seja por obras isoladas, seja pelo conjunto da obra, entre eles, o Prêmio Vergílio Ferreira em 1999, o Prêmio Camões em 2003 e o prêmio União Latina de Literaturas Românicas, em 2007.
Abaixo copio o poema central de Raiz de orvalho e outros poemas:
*
Raiz de orvalho
Sou agora
menos eu
e os
sonhos
que sonhara
ter
em outros
leitos despertaram
Quem me dera
acontecer
essa morte
de que
não se morre
e para
um outro fruto
me tentar
seiva ascendendo
porque perdi
a audácia
do meu
próprio destino
soltei ânsia
do meu
próprio delírio
e agora
sinto
tudo o
que os outros sentem
sofro do
que eles não sofrem
anoiteço na
sua lonjura
e vivendo
na vida
que deles
desertou
ofereço o
mar
que em
mim se abre
à viagem
mil vezes adiada
De quando em
quando
me perco
na procura
a raiz do orvalho
e se de
mim me desencontro
foi porque
de todos os homens
se tornaram
todas as coisas
como se
todas elas fossem
o eco
as mãos
a casa
dos gestos
como se
todas as coisas
me olhassem
com os
olhos de todos os homens
Assim me
debruço
na janela
do poema
escolho a
minha própria neblina
e permito-me
ouvir
o leve
respirar dos objectos
sepultados em
silêncio
e eu
invento o que escrevo
escrevendo para
me inventar
e tudo
me adormece
porque tudo
desperta
a secreta
voz da infância
Amam-me
demasiado
as cosias
de que me lembro
e eu
entrego-me
como se
me furtasse
à sonolenta
carícia
desse corpo
que faço nascer
dos versos
a que
livremente me condeno
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