A literatura faz sentido
Por Pedro Fernandes
A literatura, enquanto expressão verdadeiramente artística que é, é deságue para um conjunto de elementos sócio-histórico-culturais, isto é, possui a capacidade expressiva de reunir em si materialidades ideológicas e expectativas coletivas que dão tom de dada época. Isso a que Goethe vai chamar de Zeitgeist, ou espécie de fio comum, de mesma cor, que perpassa uma colcha de ponta a outra produzindo uma interdependência mútua entre os diversos fios que compõem a sua tessitura.
Tanto parece ser assim que os atuais quadros de dissolução apresentados com toda a veemência possível desde o advento daquilo que consideramos por modernismo vão sendo, de modos diversos, impressos no corpo da literatura sob o signo das vanguardas, consideradas estas como a revolução que nunca antes existiu no campo das manifestações artísticas. Haveremos, entretanto, de exibir certa ponderação, com afirmações como estas. A literatura teve sempre um caráter não de abolir a mesmice, mas de se por como elemento que a transgride, sendo instauradora de ordem outra, que antes de ter um papel de negação, tem um papel de subversão. Entendo subversão como um caráter não de inversão de papeis, mas de desestabilização de uma ordem cristalizada. Logo, encarar a vanguarda como um campo para solapar a mesmice, não parecer um percurso seguro sobre o qual possamos trilhar, já que a literatura é, em si, revolução.
A forma como se dará, no território da literatura, os quadros de dissolução apresentados pelas outras áreas – basta que se cite como exemplo as reflexões em torno da posição sujeito nos discursos da filosofia, da sociologia, da psicanálise etc. – será de reengendramento da forma de escritura. A palavra é manipulada no interesse de estabelecer aproximações que possam traduzir esse descentramento operado em determinadas categorias, como essa categoria de sujeito. Esse movimento, entretanto, nem sempre será harmonioso, com tudo acontecendo como se fosse um jogo de realidades fabricadas, cuja manipulação possa ser feita em tempo real. Posso admitir que no terreno da literatura, uma das características desse movimento de desestabilização, é o de que as coisas parecem padecer de uma certa pressa, o que faz com que o discurso literário sempre se situe no espaço sócio-histórico-cultural que ocupa e ao mesmo tempo numa realidade para-além desse espaço.
Digo isso, e lembro-me aqui o Dom Quixote, de Cervantes. Muito antes de a filosofia, a sociologia e a psicanálise se debruçarem em torno de um descentramento do sujeito, já esse romance trazia em si, o foco da discussão, ao colocar no seu universo ficcional uma personagem cuja identidade é dobrada – Alonso Quijada-Dom Quixote; antes de a física elaborar com Einstein seus conceitos de relatividade, também Cervantes com seu Dom Quixote introduzia o conceito de relatividade ao construir uma narrativa em que os planos ficção-realidade, ao serem apresentados de modo tão imbricados, estabelece questionamentos do início de um e fim do outro. A desestabilização da ordem temporal que seria operacionalizada mais tarde em Proust ou Joyce nascia aqui nesse jogo cervantino de manipulação da matéria ficcional. Com o tempo a literatura levará isso ao extremo. A estrutura do romance, por exemplo, se esfaleça, inauguram-se os jogos de despersonalização das personagens, os labirintos da mente serão campos bem mais interessantes de percorrer do que os capoeiras à céu aberto das terras de Andaluzia de Dom Quixote. O advento da psicanálise, por exemplo, fará com que o texto literário agora se comporte como dutos de materialidade escorregadia, um jogo de possibilidades, esgarça-se a ordem direta e lógica dos fatos.
O fato é que a literatura contemporânea cada vez mais vai deixando para trás aquela pele forjada do entretenimento. Talvez ela nunca tenha querido ocupar esse status e a carência de um mundo burguês é que tenha dado a ela a função de preenchimento de uma realidade esvaziada em si de sentido. O que não é de todo mal. Mesmo com toda parafernália tecnológica que criamos no intuito de preencher o vazio a realidade, ela ainda é carente de sentido simbólico. Se já não temos o tempo de Cervantes, as narrativas vão decrescendo em tamanho, vão ocupando outras textualidades, o que de certo modo inaugura outros estágios de dificuldade a ponto de ressuscitar o leitor de seu estágio letargia; agora, o texto literário contemporâneo exige do leitor um esforço só comparado ao do escritor quando se põe, dentro e à parte de sua realidade, a engendrar um universo outro, que em sendo o outro é também um mesmo ou um para-mesmo.
O que quero dizer com tudo isso é que a literatura contemporânea, talvez mais até que antes, descobriu um lugar de pertencimento para sua existência e para a existência do arcabouço sócio-histórico-cultural que engendramos. Diante dos cenários que se transmutam com certa rapidez a ponto de ocuparem estágios de liquidez, a literatura se apresenta como território em que se é possível ressignificar a ordem no caos e assimilar a sua estrutura como artefato recomposto do que convencionamos realidade. Mais que isso: o processo de transmutação da realidade visível numa realidade imaginável oferece-nos possibilidades de repensar o cotidiano, abrindo caminhos para que a existência ganhe algum sentido no meio em que ela ocupa e desperte e avance como consequência. À literatura devemos sempre recorrer não como espaço de conforto – isso pertence a outra ordem; à literatura devemos sempre recorrer como espaço de constante desassossego – no bom sentido proposto por Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, na sua lente caleidoscópica de uma realidade em frangalhos como a do seu Livro do desassossego. É nesse estágio de constante inquietude, estágio que é o em-si e o para-além, onde podemos bem dizer que a literatura faz sentido.
* Texto publicado no dia 10 de outubro de 2010, no caderno Domingo, do jornal De Fato.
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