Roald Dahl
Por Donald Sturrock
19 de
setembro de 1940. Um pequeno caça monomotor biplano da Força Real Aérea Britânica
(RAF) se dirige ao sudoeste atravessando o deserto da Líbia. Os últimos raios
do entardecer iluminam a areia com um intenso brilho avermelhado. O piloto está
sobrevoando a superfície. Tentando juntar-se com seu esquadrão, mas não consegue
localizar a pista de pouso camuflada. Seu tanque de nafta está quase vazio e
logo será noite. Só resta uma alternativa possível – uma aterrissagem forçada.
Com desespero,
passa à baixa altura sobre um solo rugoso, buscando uma área lisa para pousar.
Mas não aparece nenhum lugar propício.
O sol
desaparece por trás do horizonte e ele decide arriscar-se, reduzindo a marcha e
descendo a uns 80 p, rezando para que as rodas não batam contra alguma pedra.
Mas a sorte não está do seu lado. O trem de pouso bate numa pedra e o avião cai
no mesmo instante, com o nariz enterrado na areia. Com a impulsão violenta, o
piloto choca-se contra o painel da cabine da aeronave. Seu nariz submerso na face,
o crânio fraturado, caindo inconsciente. O avião estala em chamas.
Roald Dahl
sobreviveu a esse acidente por milagre. Passaria o resto de sua vida com as
sequelas que sofreu essa noite. Desde então, o homem que escreveu alguns dos livros
infantis mais célebres do século XX, incluindo A fantástica fábrica de chocolate, O bom gigante amigo, Os
pestes e Matilda, refletiu sobre como
este “monumental golpe na cabeça” havia mudado sua personalidade. Inclusive se
perguntava se, de alguma maneira estranha, o convertera em escritor.
Anos anos
depois de seu nascimento, em 13 de setembro de 1916, os contos de Dahl seguem cativando.
Desde sua morte, em 1990, as vendas de seus livros crescem ano após ano. Até
agora foram traduzidos para 58 idiomas, com vendas mundiais superiores aos 200
milhões de exemplares. Alguns escritores contemporâneos como J. K. Rowling e
David Williams reconheceram suas dívidas com Dahl, enquanto diretores de cinema
tão diversos como Tim Burton, Wes Anderson e Steven Spielberg ampliaram ainda
mais o alcance de sua magia. Como resultado, as obscuras e cômicas fantasias de
Dahl parecem hoje em dia quase mais assombrosas do que pareceram durante sua
própria vida.
Sem dúvidas,
seu criador, este estranho gigante que media mais de dois metros de altura e
que viveu grande parte de sua via numa modesta casa de Buckinghamshise, foi,
entre muitos sentidos, um viajante relutante neste extraordinário destino.
Teve um
passado insólito. Seus pais eram noruegueses que havia forjado uma nova vida em
Cardiff. Seu pai, Harald, um famoso agente marítimo, morreu de pneumonia quando
Dahl tinha apenas três anos, deixando sua companheira Sofie Magdalene só com
uma família de seis filhos para criar.
Por sorte,
era uma família com posses e Sofie tinha um grande caráter que esteve à altura
do desafio imposto pelo destino. Mais adiante, Dahl a descreveria como “sem
dúvidas, a principal e mais profunda influência em minha vida”.
Em 1925,
quando tinha nove anos, Dahl foi enviado como aluno para a Escola Primária São
Pedro em Weston-Super-Mare e daí para Repton, uma arquetípica escola pública
inglesa. Detestou a experiência, mas teve que tolerá-la até quando completou
dezessete anos. Para decepção de sua mãe, decidiu não ingressar na universidade
mas a uma companhia de petróleo com a esperança de que o enviariam a algum
lugar emocionante.
E fizeram.
Em 1938, foi transferido para a Tanzânia, África Oriental. Ali, com “nada mais
a fazer senão transpirar”, viveu, em suas próprias palavras, a vida de um “ridículo
jovem pukka sahib nos últimos dias do
Império Britânico”. Ganhou torneios de golfe. Irritava alemães no Clube de Dar
es Salam lançando dardos a uma fotografia de Adolf Hitler. E se embebedava. Às
vezes muito.
Isso mudou
quando estourou a guerra e decidiu unir-se à RAF. Bateu seu caça biplano
Gloster Gladiator em seu primeiro dia de serviço ativo e sua recuperação levou
seis meses. Mas voou novamente na Grécia e na Palestina onde, em 1941, derrubou
vários aviões inimigos em sua Hurricane MK I. Logo, repetidos desmaios o
obrigaram a voltar para a Inglaterra.
Logo foi
enviado a Washington, onde trabalhou para a RAF como funcionário de auxiliar
aéreo da embaixada britânica. O intrépido jovem piloto havia se convertido num
diplomata. Então, quase por acidente, começou a escrever contos sobre suas
experiências de voo, o primeiro dos quais foi publicado de forma anônima na Saturday Evening Post. O público
estadunidense os amava, Walt Disney leu um chamado Os Gremlins e decidiu que queria filmá-lo. Assim, um acaso, e o
jovem funcionário aéreo se encontrou rapidamente desfrutando da grande vida de
Hollywood, escrevendo roteiros para os animadores de Disney, relaxando na piscina
com o compositor e ator estadunidense Hoagy Carmichael e dançando com Ginger
Rogers no casamento de Dorothy Lamour. Embora o filme de Disney tenha sido
arquivado, em 1984, Steven Spielberg fez uma película meio que inspirada nessas
personagens.
Dahl era um
rebelde. Mais tarde se descreveria como “palhaço” que usava seu encanto e humor
para fazer coisas e perguntas que haviam sido quase impossíveis para qualquer
pessoa.
Visitou o
presidente Roosevelt em sua casa de campo já que sua companheira era uma grande
fanática d’Os Gremlis e jogou tênis com
o seu vice-presidente, Henry Wallace.
Foi recrutado
pelo Serviço de Inteligência britânico em tempos de guerra para obter
informações de seus contatos e comunicar o que havia descoberto para Londres.
Fez-se amigo de Ian Fleming, o criador de James Bond. O diplomático era agora
quase um espião, espalhando informação britânica controlada criada para manter
os Estados Unidos em xeque durante a guerra.
Dahl se
divertiu muito nos Estados Unidos. Saiu com atrizes glamorosas como Nancy Carroll,
teve um romance com Annabella, a companheira de Tyrone Power, e comia lagostas com
Noël Coward. Mas seu verdadeiro interesse era sua escrita. De fato, muitas
vezes recusou convites para cenas ou festas para poder ficar em casa pensando contos
sobre suas façanhas de voo.
Sua primeira
coletânea de contos, Over to You, foi
publicada em 1946. Tinha 29 anos. Nesse mesmo ano regressou aos Estados Unidos
para escrever e estar próximo de sua mãe em Buckinghamshire. No início, viveram
numa colina próxima de Great Missenden, numa casa que mais tarde se
transformaria na residência pessoal do Primeiro Ministro britânico Harold
Wilson.
Logo se
mudaram para High Street em Old Amersham, onde Dahl levou a vida de um sensível
homem do campo, dedicado à criação de cães de raça quando não se encontrava escrevendo
seu apocalíptico romance de ficção científica Some time never. Foi o primeiro romance a apresentar um mundo
destruído por um acidente nuclear.
Os críticos
logo repudiaram Some time never e
quando seus editores recusaram o próximo romance, Dahl voltou para os Estados
Unidos. Era 1951. Tinha 53 anos, estava solteiro, e sua carreira como escritor
parecia haver acabado.
Mas, em dois
anos havia reinventado a si mesmo uma vez mais, escrevendo contos para The New Yorker e para a BBC, só que
desta vez suas tramas continham mudanças de humor negro. Estes foram os famosos
Tales of unexpected. Aceitados com
entusiasmo por Alfred Hitchcock e outros, incluindo o famoso Lamb to the slaughter, que se converteu
numa série de televisão altamente aclamada e dirigida pelo próprio Hitchcock.
Em pouco tempo, a imprensa estadunidense havia elegido Dahl como o mestre do macabro.
Em 1953 se casou
com Patricia Neal, uma das atrizes mais bonitas e célebres de sua geração. Converteram-se
num casal da moda. No ano seguinte, comprou uma casa de campo próxima de sua
mãe em Great Missenden. Casa Cigana, como ele chamava, se converteria em seu
lugar para o resto da vida. Em 1955 nasceu a primeira filha, Olivia, logo
seguida de Tessa, em 1957 e seu filho Theo, em 1960. A carreira de “Pat”
tornou-se cada vez mais sólida, enquanto começavam a chegar as regalias por Tales of the unexpected. Em meados dos
seus 40, Dahl parecia haver adquirido fama, fortuna e felicidade.
Logo, em
1960, ocorreu a primeira das três terríveis tragédias familiares. Aos cinco
meses de idade, Theo foi quase esmagado contra a lateral de um ônibus quando um
táxi de Nova York perdeu o controle e bateu contra o carrinho de bebê levando-o
das mãos da babá. O bebê sofreu graves lesões na cabeça, mas sobreviveu.
Só que, dois
anos mais tarde, a filha mais velha de Dahl, Olivia, morreu depois de pegar
sarampo. Tinha sete anos. E, três anos depois, sua companheira Pat sofreu um
desastroso derrame durante umas filmagens em Los Angeles. Havia sido premiada
recentemente com um Oscar por sua atuação junto com Paul Newman em O inominado e já estava grávida da filha
mais nova, Lucy.
Dahl ficou
devastado com a morte de Olivia, mas enfrentou outras duas desgraças com uma
determinação característica. Quando a válvula que drenava o excesso de líquido
do cérebro de seu filho não deixava de entupir-se, desenhou e confeccionou
outra muito mais eficaz. E quando os médicos disseram que sua companheira
provavelmente ficaria paraplégica, ele simplesmente se negou a acreditar neles
idealizando um regime intensivo e eficaz de estimulação diária que deu lugar à
extraordinária recuperação de Pat. Três anos depois de seu acidente cerebral
foi nomeada para outro Oscar por A
história de três estranhos.
Durante este
tempo, Dahl se apoiou na sua capacidade para escapar a outro mundo – o mundo
fantástico de sua imaginação. Construiu um quarto para escrever no fundo de seu
jardim em Great Missenden (agora parte do Museu Roald Dahl), e foi ali que
finalmente começou a escrever para crianças.
Quando começou
a inventar contos para seus filhos, começou a ficar obcecado pela ideia de uma
fruta que nunca parava de crescer. Isso se converteria em seu primeiro livro
para crianças, James e o pêssego gigante
que foi publicado em 1960. Quatro anos mais tarde terminou seu segundo, A fantástica fábrica de chocolate.
Ambas
histórias se converteram imediatamente em Best-Seller nos Estados Unidos, mas
foram reprovadas por todas as principais editoras britânicas em várias
ocasiões. Finalmente, quando uma pequena editora de livros acadêmicos, Allen
& Unwin, os adquiriu em 1967, começou a carreira de Dahl como escritor para
o público infantil no Reino Unido. Mas já havia se estabelecido um padrão. A
partir de agora ia ver a si como um estrangeiro à elite literária e se
divertiria sendo uma espinha de sua carne. As relações com os editores ao menos
se tornaram tensas e adquiriu a reputação de ter pelos na língua e ser complicado.
Ophelia e Lucy
nasceram em 1964 e 1965, e com mais crianças em casa para estimulá-lo, começou
a concentrar-se cada vez mais em seu público mais jovem, que aceitava seu
trabalho com um entusiasmo que nunca se esgotava.
Em 1982
separou-se de Pat porque havia se apaixonado por Felicity “Liccy” Crosland. Casou-se
com ela no ano seguinte. Durante oito nãos que esteve casado com Lyccy sua
produtividade cresceu muito; nesse período escreveu o BGA, Matilde e As bruxas, junto com livros mais curtos.
Quando morreu, em 1990, acabava de começar uma nova história sobre uma menina
que ensinava seu cão a falar.
Ao longo de
sua vida adulta, Dahl manteve uma notável capacidade para vincular-se com as crianças.
As pessoas às vezes o descrevia como uma espécie de flautista de Hamelin, encantador
dos pequenos com seus contos e sua narrativa. Estava orgulhoso de que quando entrava
em sua sala de escrita, em apenas dez minutos alcançava ver o mundo através dos
olhos de uma criança e, na velhice, com frequência se referia a si mesmo como “um
velho infantil”. Esse foi, talvez, seu maior dor. É a melhor explicação sobre o
porquês os pequenos seguem respondendo com tanto entusiasmo sua vasta, original
e fabulosa imaginação.
***
Donald Sturrock é biógrafo de Roald Dahl.
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