Cegueira - um ensaio, de Fernando Meirelles



Cegueira - um ensaio, de Fernando Meirelles. Foto de Alexandre Ermel e Ken Woroner para o livro.



Ao espectador comum, os muitos fatores envolvidos na produção de um filme costumam passar despercebidos. Da elaboração do roteiro, passando pela escolha do elenco, até minúcias de ordem técnica, tudo fica oculto quando se assiste ao resultado final. O livro Cegueira - um ensaio, de Fernando Meirelles, é uma rara oportunidade de olhar por dentro os bastidores de um longa-metragem.

O livro foi idealizado por Silvinha Meirelles, irmã do cineasta, a partir do conjunto de textos publicados por ele num blog no período quando trabalhava na produção e filmagem de Blindness, obra feita a partir do romance Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. O resultado do livro agora publicado é belíssimo.

O leitor tem contato não apenas com os bastidores, mas com as confidências do diretor; seus textos ora mostram as dúvidas, as inseguranças, as decisões e as lições aprendidas no set e sobre o exercício de adaptar uma obra literária do nível que é o romance do escritor Prêmio Nobel da Literatura. Detalhe: depois de muitas relutâncias do próprio Saramago que, dizem uns, decepcionado com a adaptação de seu livro A jangada de pedra, e, incapaz de conceber com seria ver o rosto de suas personagens no papel de um ator, dizem outros, não tinha qualquer interesse em ver essa obra na sétima arte.

No total são mais de duas centenas de fotografias de Alexandre Ermel e Ken Woroner especialmente tratadas para manter a identidade do filme, cuja marcante claridade remete à cegueira branca. Um desses registros é o que abre esta publicação. O jogo com o excesso de luminosidade coloca a imagem também próxima do seu avesso: a sombra. No fim, os registros parecem refazer o chiaroscuro do barroco italiano, isto é, a fotografia finda por atravessar a fronteira que a distingue a pintura, um movimento que continua a expandir pela inventividade o tratamento do romancista na sua confusão entre os gêneros do romance e o do ensaio, patentes desde o título da obra.

Há dois destaques emocionantes sobre a obra: um é o relato de Fernando Meirelles de quando assistiu pela primeira vez o seu trabalho junto com Saramago; outro é um texto redigido pelo escritor português reproduzido abaixo a partir do material de divulgação de Cegueira - um ensaio.

Edição de colecionador, a obra editada pela Master Books traz um encarte com o roteiro do filme; o próprio livro segue um padrão portentoso, repetindo o formato widescreen da tela de cinema. A seguir copiamos o vídeo em que José Saramago se emociona ao ver seu romance na tela; é um pequeno vídeo de bastidor com menos de dois minutos que ganhou projeção na web e é motivo de registro de um dos textos do cineasta no livro agora publicado.





De José Saramago:

“Houve um tempo em que eu respondia que não queria ver a cara das minhas personagens quando me chegavam pedidos de adaptação de romances meus ao cinema. Digamos que eu era então uma espécie de radical da escrita: o que não passava pela palavra posta num papel simplesmente não existia. Fernando Meirelles foi uma das vítimas dessa intransigência. Quando o Ensaio sobre a Cegueira foi publicado no Brasil, salvo erro, em 1995, imediatamente me escreveu para manifestar o seu interesse em adaptá-lo. Teria sido o seu primeiro filme, antes de Cidade de Deus, antes de O Jardineiro Fiel, se não tivesse esbarrado com o muro da resistência do autor a conhecer os atores que iriam dar consistência e outra realidade às figuras desenhadas pela sua imaginação. Não me lembro do que sucedeu depois. Escrevi a Fernando expondo-lhe as minhas razões? Não lhe escrevi sequer, deixando que o silêncio respondesse por mim? Melhor do que eu, ele o saberá. Ao autor do livro só lhe resta pedir desculpa e agradecer a sua generosidade de espírito, uma generosidade que lhe permitiu aceitar a minha recusa sem a menor acrimônia. Tanto mais que, agora sim, já conheço a cara das minhas personagens. Será preciso dizer que gostei delas? Será preciso dizer que gostei, e muito, do filme? Nunca esquecerei a tremenda emoção que experimentei ao ver passar por trás de uma janela, em fila, as mulheres que vão pagar com os seus corpos a comida que lhes havia sido sonegada, a elas e aos seus homens. Essa imagem resume, para mim, todo o calvário da existência da mulher ao longo da História.”

Ligações a esta post:
>>> Para acessar o diário de Blindness que deu origem ao livro, clica aqui.

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