Waslala: memorial del futuro, de Gioconda Belli

Por Cecil Jeanine Albert Zinani¹


A obra tem como cenário a mesma Fáguas², projetada em um tempo futuro. A ação acontece em meados do século XXI, e a situação do país apresenta uma considerável deterioração. O mundo está dividido em dois grandes blocos: os países desenvolvidos e os subdesenvolvidos. Os países subdesenvolvidos, como Fáguas, têm como função precípua fornecer oxigênio - o que deveria demandar um cuidado especial na preservação do meio ambiente - e receber lixo produzido pelos países desenvolvidos - o que implica deterioração do meio ambiente.

Em Fáguas, a guerra é endêmica, e as pessoas nem sabem mais por que lutam. Nesse cenário, proliferam contrabandistas, traficantes de armas tornadas obsoletas no primeiro mundo, que estimulam as disputas entre facções rivais e traficantes de drogas, já que no país há grandes plantações de "filina", produto híbrido de marijuana e cocaína, propriedade dos irmãos Espada, tiranos locais.

As fronteiras do país se desvaneceram; como nação, Fáguas não existe mais. Apenas as populações ribeirinhas conseguem sobreviver em relativa paz, pois o rio foi declarado zona neutra. Essas populações vivem da sucata e do lixo que vêm em grandes barcaças: restos de aparelhos eletroeletrônicos, de aviões, de carros, de computadores, enfim, de toda a infinidade de objetos que compõe o cotidiano das pessoas dos países desenvolvidos. O maior problema em relação ao lixo são os resíduos tóxicos que estão misturados aos objetos reaproveitados pela população, causando-lhe profundos danos e mesmo a morte.

Tendo-se tornado uma lixeira para o primeiro mundo, é natural que a ideia de utopia prospere, como um mecanismo de defesa. Surge então Waslala, a última utopia, não apenas sonho de cada habitante de Fáguas, mas uma obsessão coletiva, embora pouquíssimas pessoas tivessem tido o privilégio de lá estar por algum tempo e atestar sua existência efetiva. Isso significa que o mito de Waslala adquire dimensões, tanto particulares quanto universais, o que torna um arquétipo utópico.

É dom José, avô de Melisandra, heroína do relato, e um dos fundadores de Waslala, que, diante da insistência da neta em partir, a fim de encontrar seus pais, revela a ela e a Rafael o mistério desse local.

[...] me uni a un grupo de poetas que, a partir de un método distinto, recurriendo a las possibilidades de la imaginación, de la mitologia acumulada, de la experiencia colectiva encontrada en la literatura humanista y en la poesia de todos los tiempos, se proponían crear un modelo de sociedad totalmente nuevo y revolucionario y concedía a cada individuo la responsabilidad de la comunidad. (BELLI, 1997, p.59)

Há semelhanças entre a sociedade descrita por dom José e a Utopia, de Thomas More, no repúdio à dominação e no privilégio ao princípio de igualdade, da mesma forma que propõe uma sociedade sem classes e sem propriedades. Inclusive a personagem masculina, Rafael, possui o mesmo nome do herói de More, fato que é ressaltado por dom José. Também o ancião se refere a Waslala como "el lugar que no es" (BELLI, 1997, p.41), utilizando a definição de utopia.

Dentro da perspectiva de um mundo pós-moderno, não há mais lugar para a poesia, por isso Waslala foi fundada por um grupo de poetas, pessoas que valorizavam a leitura, a utilização artística da palavra, tornando-se a linguagem, novamente, instrumento de libertação.

[...]

Outro aspecto importante refere-se à perda da faculdade imaginativa e da capacidade de sonhar os próprios sonhos, pois Waslala existe na imaginação. Assim, a dificuldade de transpor a atividade cotidiana para o plano ideal iviabiliza a realização da utopia.

É Melisandra a personagem que consegue chegar a Waslala, onde encontra a mãe, única sobrevivente desse lugar que não é. Muitos buscam esse local, mas quem consegue encontrá-lo, localizando a passagem secreta entre o tempo e o espaço, é uma mulher sonhadora. Isso ocorre porque Melisandra dispõe de uma motivação peculiar: as histórias do avô, um dos fundadores de Waslala, e a busca a seus pais, que a abandonaram, a fim de encontrar essa terra. São essas questões não-solucionadas na vida da jovem que a impulsionam em sua busca particular. No momento adequado, deixando o avô e a administração da fazenda, ela parte para cumprir sua missão. Além disso, dispõe de intuição que a conduz ao local exato onde se encontra toda a vida para resolver o conflito existencial que sempre a envolvera: desvendar o mistério de sua origem.

Notas

Este texto é um fragmento de Literatura e gêneroa construção da identidade feminina, de Cecil Jeanine Albert Zinani (EDUCS, 2006). A obra discorre sobre as questões da formação da identidade pessoal e de gênero do sujeito feminino tomando por base a leitura da obra A mulher habitada, de Gioconda Belli. No desenvolvimento do seu argumento a autora oferece resenhas de outras obras da escritora nicaragüense ainda inéditas para o leitor brasileiro, mas certamente essenciais, como é o caso agora colocado em evidência. 

2 Fáguas é também o cenário para A mulher habitada, de Gioconda Belli. 


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual