Salò ou os 120 dias de Sodoma, de Pier Paolo Pasolini
Por Pedro Fernandes
Pier Paolo Pasolini é apontado com um dos mais fecundos intelectuais italianos do século XX. Poeta, ficcionista, ensaísta, crítico literário, teatrólogo, linguista, argumentista, roteirista, cineasta, teórico de cinema, interessou-se ainda pelas artes plásticas, escreveu inúmeros artigos em jornais e revistas e manteve uma intensa correspondência com amigos e leitores. Quer dizer, um universo rico e impossível de ser alcançado porque sempre em expansão a partir das leituras que sobre ele se fizeram desde então.
Salò ou os 120 dias de Sodoma é seu último trabalho para o cinema. O filme é também uma das obras mais perturbadoras da história do cinema: pelo seu conteúdo - a primeira coisa que logo chamará atenção do telespectador, evidentemente - mas, também pela leitura terrível que o cineasta faz acerca do modelo social que se estabelece com a estabilização do modelo burguês capitalista no centro de mando e de poder.
Da primeira camada, essa que é suficiente para adjetivar o filme como forte, recordo que, assim como ao assistir Calígula (de Tinto Brass, Bob Guccione, Giancarlo Lui, 1979) fiquei impressionado, com Salò. E não pelas perversões sexuais, mas pela força da violência ou o modo como Pasolini utiliza a imagem para tratar do lado mais escuro do homem. Com cenas explícitas de sodomia, violação - e tudo sem findar em pornografia - e homicídio, Salò imprime uma grafia que sendo meticulosamente executada, seja pelos bons planos fotográficos, seja pela aproveitamento das tomadas de câmera, é capaz de nos chocar sem se fazer apelativo. Sim, o seu propósito é de ser uma tentativa radical contra uma plateia domesticada e incapaz de reparar a realidade porque mais extravagante ou violenta possível não é mais capaz de produzir qualquer choque.
Seguindo um interesse que fez marca na vida cinematográfica do italiano, o roteiro de Salò é baseado livremente no romance do Marquês de Sade, Os cento e vinte dias de Sodoma ou o elogio da libertinagem (1782-1785). Essa narrativa se funde em três círculos - o da mania (perversões), o da merda (coprofilia) e o do sangue (tortura e morte).
Na província de Salò, ao norte de Itália que estava controlada pelos nazi-fascistas, em 1944, quatro altos dignitários reúnem dezesseis exemplares perfeitos de jovens e levam-nos para um palácio perto do Marzabotto juntamente com guardas, criados e garanhões. Além deles, há quatro mulheres de meia-idade: três delas se põe a contar, à maneira de uma tradição que nos lembra O Decamerão, histórias provocantes e essas findam por constituir o interesse de representação teatral entre os do alto do poder.
A transmutação da mansão em espaço que, aos poucos nada tem de cenografia e muito alcança de perversão metaforiza o retrato de uma Itália controlada pelo horror, sobretudo, as vias de controle do corpo, aqui mediadas pelo prazer.
Dominação e submissão como poucas vezes se viu no cinema. E não para reafirmação desses valores desumanizadores mas como choque e reflexão; o sexo como metáfora de poder no homem. Aí está o tema da anulação do outro, como se um grande grito do cineasta, sobre o desfiladeiro para o qual a humanidade estava a ser arrastada. Recorde-se: o contexto do filme é o do nazi-fascismo, mas o de sua apresentação apontava para outros desígnios de poder, como o apagamento das classes pela ideário do consumo, da uniformização dos costumes e da condena do corpo como domínio de liberdade ou sua transformação em instrumento de opressão e o sexo como coisa.
Salò significou a entrada de Pier Paolo Pasolini no território mais sombrio da sua leitura sobre os destinos dessa sociedade de coisificação do homem. Ou seja, se afirmava aqui uma linha de força que mesmo admitida no ponto de maturidade de seu pensamento ainda ficou por explorar e possivelmente tanto ainda nos tinha a dizer! No mesmo ano da realização do filme, sabemos, o cineasta foi brutalmente assassinado em Roma, um crime que permaneceu obscuro até os dias de hoje.
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