Mario Vargas Llosa, o Prêmio Nobel de Literatura de 2010
O Prêmio Nobel
Faltavam
alguns segundos para uma hora da tarde (hora local) quando Peter Englund,
secretário da Academia sueca, abriu a famosa porta branca onde está a sede
acadêmica do Prêmio Nobel e pronunciou o nome do escritor peruano Mario Vargas
Llosa como novo galardoado com o prêmio mais prestigiado das letras universais.
Como sempre,
as razões da Academia cabem em duas linhas: “Por sua cartografia das estruturas
do poder e suas imagens mordazes da resistência individual, a revolta e a
derrota”. No momento do anúncio, o escritor estava em Nova York, onde ministrava
um curso sobre Jorge Luis Borges na Universidade de Princeton. Também é sabido
que os leitores em língua espanhola breve receberão seu novo romance O sonho celta (escrito antes do prêmio,
portanto, ainda sem julgamentos se escritor melhorou, permaneceu ou piorou sua
literatura depois de ganhar a maior honraria das letras). O romance é sobre uma
personagem histórica, Roger Casement (1864-1916) que questionou a brutalidade
do Governo de Leopoldo II da Bélgica durante a colonização do Congo e a
violência contra os seringueiros no Amazonas.
Nascido em
Arequipa, Peru, em 28 de março de 1936, Mario Vargas Llosa já tem no currículo
todos os prêmios mais importantes das letras espanholas: do Cervantes ao
Príncipe de Astúrias. Há alguns anos era sondado pelos apostadores como um dos
favoritos ao galardão norueguês justamente por ter escrito alguns dos clássicos
da literatura universal contemporânea como A
cidade e os cachorros (1962), A casa
verde (1965) e Conversas na catedral
(1969).
Vargas Llosa, um
intelectual comprometido
Quando em
1959, com 23 anos, saiu de Lima para Madri com os contos de Os chefes na bagagem e uma bolsa para
cursar o doutorado na Universidade Complutense, Vargas Llosa se converteu num cidadão
do mundo que hoje tem residência nas capitais peruana e espanhola depois de
viver em Barcelona, Paris e Londres. A lista de seus interesses é, além disso,
tão extensa como é a quantidade quilométrica de carimbos de seu passaporte. Ninguém
mais alheio à torre de marfim que o novo Prêmio Nobel. Sua devoção por Thomas
Mann o levou a estudar alemão em Berlim; sua paixão por futebol não fez duvidar
do orgulho que sentiu pelo dia em que, como criança, esteve no Estádio Nacional
para vestir a camiseta do Universitário contra o eterno rival, o Alianza Lima.
Num bar da
rua Menéndez e Pelayo de Madri, perto de sua pensão, El Jute, o então estudante
peruano começou e passou as tardes escrevendo A cidade e os cachorros, o romance que se converteu num hit do boom
latino-americano e iniciou um caminho para o Prêmio Nobel. Meio século depois,
aquele rapaz inquieto é um intelectual que não perdeu o ápice da inquietude. O
mesmo participa das reuniões da Real Academia Espanhola, visita o Museu do
Prado, é quem polemiza com os defensores do populismo na América Latinha ou
destaca a descoberta de um novo livro – de Irene Nemirovsky, Javier Cercas ou
Héctor Abad – para as páginas de um jornal.
Ao estrear-se avô, escreveu seu primeiro
título de literatura infantil, Fonchito e
a lua – livro que indica a capacidade de assombro sobre o trabalho de um
homem capaz de, na alta idade, tinha 74 anos, viajar ao Congo para pesquisar
material para seu novo romance e, aproveitando a oportunidade mais uma vez como
jornalista, denunciar o colonialismo na África.
Se Vargas Llosa
houvesse decidido em ocupar-se exclusivamente de cultivar sua própria obra ninguém
o havia reprovado, mas nos últimos três anos alternou a escrita de O sonho do celta com a leitura minuciosa
da obra completa de Juan Carlos Onetti. Daqui, saiu o ensaio dedicado ao
escritor uruguaio, A viagem à ficção.
Essa mesma generosidade havia demonstrado ao escrever História de um deicídio, um dos livros de referência sobre Gabriel
García Márquez, que, mesmo depois do enigmático episódio que marcou a ruptura
da amizade entre os dois, não o fez desistir de incluir esse título em suas
obras completas. Além desses dois estudos, destaca-se também os ensaios
escritos sobre Flaubert, Joanot Martorell e Victor Hugo.
Uma obra sem
limites
Todo esse
exercício literário diverso se observa não apenas na figura inquieta de Vargas
Llosa, mas numa observação já, até certa vez, demarcada por ele mesmo, não
sobre seu exercício literário, mas aqui tomamos emprestado, sobre os únicos
limites do romance realista: “que não tem limites”. Sim, sua obra não tem
limites.
A referida sentença
tem a ver com uma das características essenciais de seu romance A cidade e os cachorros. Esse título
agrega a compreensão de que a realidade se supõe ancorada na existência do
pesadelo (tal como Kafka), pelo empenho psicológico (tal como Proust) e na ordem
do mítico (Carpentier); mais: nas tortuosas buscas (Dostoiévski), na luminosa
objetividade (Hemingway). Vargas Llosa escreveu muitos romances. Alguns deles
formam a parte do que melhor já foi escrito em língua espanhola. Por essas relações
apontas a partir do romance de 1962, tem-se a justificativa para essa
afirmativa audaciosa.
“Estou certo
de que os leitores do escritor se dividem entre os que preferem Conversas na catedral (1969) e os que
gostam mais de A guerra do fim do mundo
(1981). Embora possa fazer um terceiro grupo que gosta dos dois. Em ambos
romances se refletem duas maneiras diferentes de enfrentar o acontecimento
literário. Na primeira, projeto totalizante, as corruptelas políticas peruanas
(mais um meticuloso detalhe de perversões) no marco de um grande
desenvolvimento de recursos narrativos; na segunda, com a mudança do mapa geográfico
e histórico, uma reinterpretação livresca de Os sertões, do escritor brasileiro Euclides da Cunha, e uma
poderosa metáfora dos fanatismos ideológicos e religiosos da sociedade contemporânea.
Mario Vargas Llosa se alimenta de fontes estritamente literárias. Fontes sobretudo
século passado: de Flaubert, que garantiu o respeito pela frase, os tempos
verbais exatos para gerar a sensação de tempo íntimo, histórico e do romance ou
Victor Hugo, com a função ética e a escritura titânica”, diz J. Ernesto
Ayala-Dip para El País.
A
versatilidade de Vargas Llosa é louvável. Como demonstra Elogio da madrasta (1988), uma verdadeira oferta do melhor da
literatura erótica. Sua riqueza conceitual alcança estratos sociais, psicológicos
únicos; o nível das estratégias narrativas são estudadas com precisão cirúrgica
na construção do espaço, do tempo, das vozes dos narradores e da construção do
ponto de vista.
Depois dos
romances histórico e erótico, o escritor peruano também ensaia o mistério
policial no mesmo instante quando busca compreender o espaço do terrorismo político
de seu país dos anos 1990: Lituma nos
Andes (1993) – um romance amargo sem atender sua desilusão pelas proclamações
políticas quando conduzem ao sectarismo e à desumanização dos meios empregados
para alcançar objetivos inconfessáveis; A
festa do bode (2000) – provavelmente um dos melhores romances sobre
ditadores já escritos em língua espanhola.
E O paraíso na outra esquina (2003) e Travessuras de menina má (2006)? Na
primeira convergem algumas das paixões literárias de Vargas Llosa: o grande
romance do século XIX, a fascinação história e transcendência moral. E na
segunda desenvolve a capacidade do autor para criar uma heroína de tanta característica
irônica como humana. As idéias políticas de Mario Vargas Llosa, sua defesa de
certas políticas neoliberais, podem não alcançar a simpatia de muita gente.
Mas, poderíamos dizer, como Marx dizia de Balzac, que o autor de A casa verde é politicamente conservador
mas no terreno da arte e da ficção é progressista. Isso quer dizer que nem
sempre a figura do escritor se confunde com aquilo que é representado por sua
literatura.
E, para
dizer que o Llosa fuja de um caráter literário comum a outros grandes
escritores, o autobiográfico, eis um título genial que o representa bem, A tia Julia e o escrevinhador (1977), além
de ser uma combinação perfeita entre alta literatura e uma deslumbrante simulação
da literatura popular.
É um
escritor completo.
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