Mark Twain
O homem
Por Raquel
Quílez
Foi Samuel
Langhorne Clmens até aos 28 anos, quando se entregou plenamente à escrita. Mark
Twain foi o pseudônimo escolhido como uma forma de assinalar dois instantes
distintos de uma vida igualmente intensa em cada um deles, mas vividos sempre
com certa dose de ironia. “Em 20 anos estarás mais decepcionado pelo que não
fizestes do que pelo o que fizestes”, disse. E aplicou com rigor essa premissa.
Cumpre-se
agora (em 2010) 100 anos da morte do genial escritor que nasceu em 30 de novembro
de 1835, na Flórida, para onde seus pais haviam migrado para estar próximo do
tio John, um próspero comerciante dono de uma fazenda e uns 20 escravos negros.
Também seu pai se dedicou à terra, atividade muito lucrativa num país em plena efervescência
expansionista. Eram os anos das grandes plantações de algodão, dos
desgarradores cantos de lamento... E tudo acabou plasmado em suas obras.
Aos quatro
anos, sua família se mudou para Hannibal, povoado ribeirinho do Mississipi que
serviu de inspiração para o São Petersburgo de Swayer e Hucklberry Finn, suas
grandes criações. Twain sempre bebeu de sua experiência. Aos 12 anos ficou
órfão de pai e deixou os estudos para se empregar como aprendiz de tipógrafo. Assim
começou a familiarizar-se com as letras e logo chegaram as primeiras colaborações
em jornais da Filadélfia e de Saint Louis. Mas o corpo pedia mudanças e
chegando aos 18 anos decidiu iniciar suas viagens em busca de dinheiro. Foi piloto
de um vapor fluvial – a atividade, confessou, que realizou com maior felicidade
em sua vida –, inspetor de minas de prata, caçador de ouro... Eram os anos da
conquista do Oeste; haviam sido descoberto metais preciosos na Califórnia e gente
do país inteiro mudou seu eixo de vida em busca da sorte. Mas, um a um os seus
sonhos foram frustrados: veio a Guerra de Sucessão em 1861 que interrompeu o
tráfego fluvial, as minas de Nevada eram muito difíceis para exploração nesse tempo,
e o ouro, nunca apareceu como esperava.
A pena se
converteu num modo mais realista de ganhar a vida. Trabalhou como jornalista em
várias frentes e garantiu a ficção suficiente até que em 1865, ano em que
findou a guerra salvando a unidade do país, chegou seu primeiro êxito: “A
famosa rã saltitante de Calaveras”, afirma Mark Twain, expressão do Mississipi
que significava duas braças de profundidade, a superfície mínima para navegação.
Começou então uma fase de contínuas viagens como jornalista e conferencista que
o levaram a Polinésia, Europa e ao Oriente, que também foram imortalizadas em
seus livros: Os inocentes no estrangeiro
(1869) e Roughing It (1872), em que
ele recria suas aventuras pelo Oeste.
Depois de
casar-se em 1870 com Olivia Langdon, filha de um sujeito de posses muito ativo
na luta antiescravista, mudou-se para Connecticut. Acabou-se a vida de nômade e
começou a crítica social denunciando a corrupção política ou as ânsias por enriquecimento
a qualquer custo. Seis anos mais tarde publicou seu primeiro grande romance, As aventuras de Tom Sawyer (1876),
baseada em sua infância. Depois chegaram as de Huckleberry Finn (1884), também
ambientadas na ribeira do grande rio, embora menos autobiográficas. E de novo
seus próprios passos em Vida no
Mississipi (1883), sobre seu encantador momento como piloto fluvial.
As coisas
iam bem, inclusiva cria em 1884 sua própria editora, a Charles L. Webster and
Company. Mas, pouco a pouco, a vida começa a mudar. E a amargura invade suas
páginas. Em 1893 inventa um novo tipo de máquina que mecanizava o processo de
composição do texto, a Paige, e perde muito dinheiro; é quando decide mudar-se
para a Europa e percorrer o mundo, de novo, como conferencista. O intuito era recuperar-se.
Nesse curso duas de suas filhas morrem, um por meningite e a outra por complicações
da epilepsia, e sua mulher enferma também perde a vida. Esses últimos anos não foram
fáceis para Twain. Já em O estranho
misterioso, (romance publicado em 1916) afirma que se sente como um
visitante sobrenatural, chegado com o cometa Halley e disposto a abandonar a Terra
com a seguinte reaparição do astro no fim de seu ciclo de 79 anos E assim foi
que sucedeu.
Morreu no dia
21 de abril de 1910 em Redding (Connecticut), mas mesmo com sua morte teve de
recorrer à ironia. É que o New York
Journal se adiantou e em 1897 já publicou sua partida. Erro fatal que Twain
respondeu com uma carta ao diretor do periódico: “James Ross Clemens, um primo
meu, esteve seriamente enfermo em Londres há duas semanas. A notícia de minha
enfermidade derivou a enfermidade de meu primo; a notícia de minha morte foi
sem dúvida um exagero”, dizia. Cético, gostava de dizer: “E assim vai o mundo.
Há vezes desejo sinceramente que Noé e sua comitiva tivessem perdido o barco”. E
assim viveu o gênio. Gênio e figura até na morte.
O escritor
Por Virginia
Hernández
Para muitos Mark
Twain é sinônimo de romances juvenis e longas tardes de agosto, mas o certo é
que o escritor é considerado um dos mais importantes nomes da literatura
estadunidense. Foi um escritor popular quando estava vivo (algo que na época era
experimentado por poucos) e soube retratar – e criticar – como ninguém as
injustiças de seu tempo e de sua terra, o sul dos Estados Unidos: o racismo, a segregação,
os maus tratos, o ódio, os excessos...
O autor,
considerado o Charles Dickens do novo mundo, foi mestre dos mestres. Uma boa prova
disso são os elogios de escritores que vieram muito depois e que são figuras
igualmente importantes como William Faulkner, Norman Mailer ou Ernest Hemingway.
“Foi o primeiro escritor verdadeiramente americano e todos os nós somos seus
herdeiros”, disse o autor de Luz de
agosto ou Enquanto agonizo, do
sul como Twain. Para Mailer, “a prova do bom que é Huckleberry Finn é que pode ser comparada com os melhores romances
modernos”. Algo que também compartilhou o escritor de Por quem dobram os sinos?: “Toda a literatura moderna estadunidense
procede de um só livro de Mark Twain intitulado Hucleberry Finn. Todos os textos estadunidenses procedem deste livro.
Não houve nada antes. Não houve algo tão bom desde então”.
Embora com sua
habitual ironia, Twain assegurou que “um clássico é alguém a quem todo mundo
queria haver lido mas que ninguém quer ler”, Huckleberry, o espírito livro que
acompanhou Tom Sawyer e ajudou a escapar o negro Jim, nos mostra as misérias
humanas. Embora acabem na moral que a consciência de Twain imprimiu a sua vida.
Suas personagens não têm a missão divina de buscar a justiça e seguir o caminho
reto; são criaturas e por isso sentem inveja, raiva e querem, como fim último,
salvar seu pescoço. Assim, expressou em Os
inocentes no estrangeiro, livro de viagem que saiu de seu périplo pela
Europa e os territórios palestinos: “E assim vai o mundo. Há vezes desejo
sinceramente que Noé e sua comitiva tivessem perdido o barco”. Não confia nos
humanos, mas espera poder fazê-lo.
Suas vivências
marcaram seus escritos. A infância de criança doente e a perda de seu pai estão
aí. Seu trabalho prático num vapor pelo Mississipi, como jornalista para o
jornal de seu irmão, a Guerra de Sucessão, os êxitos, suas viagens, a perda de
sua companheira e de suas filhas, sua riqueza, a ruína. Um percurso vital que
foi fortalecendo sua veia mais sarcástica e que se aproximou com a amargura. Seu
legado mais ácido chegou depois da sua morte. Os herdeiros publicaram sua
autobiografia e os textos mais críticos que mostram seu tormento: até 1946 não vieram
a lume Cartas da Terra, em que o
próprio Satanás expõe a relação entre Deus e os homens. “Eles rezam por ajuda,
favor e proteção todos os dias; e fazem com confiança apesar de nenhuma oração nunca
ter sido respondida”.
Ligações a esta post:
>>> No Tumblr do Letras uma reunião de fotografias raras do escritor
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