Uma leitura de “Em alguma parte alguma”, de Ferreira Gullar
Por Régis Bonvicino
O novo livro
de Ferreira Gullar traz 58 poemas, que se organizam como memória, não da vida,
mas de suas leituras de certa poesia brasileira, sobretudo a dos anos 1950 para
trás, vazadas de biografia que se lê, aqui e ali, nos textos. Essa memória de
leituras se dispõe por meio de colagens de trechos reimaginados de poemas de
Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, do próprio Gullar, de
traços típicos do concretismo e de anotações soltas, à la modernismo lato
sensu. Há um serialismo livre, que desdobra poemas e temas, sem se caracterizar
como dodecafônico (Arnold Schoenberg) ou integral (Pierre Boulez), ou seja, sem
intenção de obra acabada, ao contrário, por exemplo, de Educação pela pedra (1966),
de Cabral. Há, nas peças, uma aparente recusa do discurso literário, que,
entretanto, se resolve literariamente em um discurso literário, “poético”. Os
textos se estruturam em orações subordinadas coloquiais, mas eruditas,
pontuadas por vocábulos de alto calão. Compõem-se, ao que me parece, a partir
da fala, de um autor culto, transposta para o papel.
O recurso da
parataxe é utilizado ocasionalmente. O poema “Fica o não dito por dito”, que
inaugura o volume, condensa os traços característicos que acabo de enumerar.
Começa por reavivar o Drummond de “Poesia” (Alguma poesia, 1930), de
“Consideração do poema” e “Procura de poesia” (Rosa do povo, 1945). Gullar: “o
poema/ antes de escrito/ não é em mim/ mais que um aflito/ silêncio/ ante a
página em branco”. Drummond de “Poesia”: “Gastei uma hora pensando num verso/
que a pena não quer escrever./ No entanto, ele está cá dentro/ inquieto, vivo/
ele está cá dentro/ e não quer sair…”. Drummond de “Procura de poesia”: “… O
que pensas e sentes, isso ainda não é poesia…”.
Adiante, no
mesmo texto, Gullar escreve: “… mas dizer o quê?/ dizer/ olor de fruta/ cheiro
de jasmim?/ mas/ como dizê-lo/ se a fala não tem cheiro?/ por isso é que/
dizê-lo/ é não dizê-lo/ embora o diga de algum modo/ pois não calo…”. Cabral de
“Psicologia da composição” (1946-1947): “… São minerais/ as flores e as
plantas,/ as frutas, os bichos/ quando em estado de palavra” ou “Enquanto na
ordem/ de um outro pomar/ a atenção destila/ palavras maduras”. Ou o Cabral de
“Antiode” (1946-1947): “… Flor é a palavra/ flor, verso inscrito/ no verso,
como as manhãs no tempo…” ou “… Poesia, te escrevo/ agora: fezes, as fezes
vivas que és…”. Em “Fica o não dito por dito”, de Gullar, há ecos ainda de sons
de “O artista inconfessável” (1975), do mesmo João Cabral. Gullar: “… então ele
disse/ o que disse/ sem saber o que dizia?/ então ele o sabia sem sabê-lo?/
então só soube ao dizê-lo?/ ou porque se já o soubesse/ não o diria?…”. Cabral:
“… Fazer o que seja é inútil./ Não fazer nada é inútil./ Mas entre fazer e não
fazer/ mais vale o inútil do fazer./ Mas não, fazer para esquecer/ que é
inútil: nunca o esquecer/ Mas fazer o inútil sabendo/ que é inútil, e bem
sabendo…”. O que é dúvida, especulação errática da gênese de linguagem, em
Gullar, constitui-se reflexão precisa em Cabral. Nesse mesmo poema
gullariano, irrompem, como em todos, rompantes prosaicos: “… é que só o que não
se sabe é poesia…”.
É louvável
que proponha tal programa, o de uma poesia não dedutível, de invenção,
entretanto, a fatura, como procuro demonstrar, salvo melhor juízo (e devo ser
minoria da minoria), se faz por meio de “apropriações” reimaginadas de poemas
alheios, o que instaura o paradoxo. Seria esse o dilema de uma tendência
majoritária da poesia brasileira? Gullar encarna, com isso, o papel de
intérprete desse tempo? Afirmei que a parataxe, resolvida através de
paronomásias típicas do concretismo, apenas pontua orações subordinadas em seus
textos. Exemplos: “a borra/ a sobra/ a escória/ a incúria/ o não saber…”
(“Desordem”) ou “ o osso/ o fóssil” (“Reflexão sobre o osso de minha perna”),
este a relembrar o José Paulo Paes, de “Ode à minha perna esquerda”,
involuntariamente. “Desordem” ressoa, igualmente, o Cabral já transcrito,
ao lado de procedimentos concretistas: “sim, este osso/ a mais dura parte de mim/
dura mais do que tudo que ouço/ e penso/ mais do que tudo o que invento/ e
minto/ este osso/ dito perônio/ é, sim/ a parte mais mineral/ e obscura…”.
Fora do
esquema?
O paradoxo
que apontei acima retorna em “Offprice”, no qual Gullar assevera: “Que a sorte
me livre do mercado/ e que me deixe/ continuar fazendo (sem saber)/ fora do
esquema/ meu poema/ inesperado…”. Se existe um único poeta vivo brasileiro no
mercado, em sentido possível, ele é exatamente Gullar, colunista de um grande
jornal, amigo da família Sarney, frequentador do jet set da FLIP,
autor editado pela Nova Aguillar, Prêmio Camões, aspirante ao Prêmio Nobel etc.
Transcrevo a metade final da peça, que acentua as contradições: “e que eu
possa/ cada mais desaprender/ de pensar o pensado/ e assim poder/ reinventar o
certo pelo errado”. Talvez não seja uma contradição, mas o ato de ratificar o
desejo de não reler a poesia brasileira, como o faz, mas de reinventá-la.
O livro é
extenso e não posso me deter em todos os poemas. Há versos fortes como
“deflorou-me as narinas” (“Novo adendo ao poema desordem”). Há poemas bem
realizados como “O que se foi”: “O que se foi se foi/ Se algo ainda perdura/ é
só a amarga marca/ na paisagem escura”, metrificado, quase todo, em seis
sílabas. Há, entretanto, cacofonias como “e outro pergunta:/ eu sou meu osso/
ou sou somente a mente?…”. A dicção não é homogênea, como se quisesse produzir
um antiestilo: “A poesia é, de fato, o fruto/ de um silêncio que sou eu, sóis
vós/ por isso mesmo que baixar a voz…”.
Quando trata
do tema morte (o “tema” literário por excelência), recorre de novo a Drummond:
“Os mortos acomodam-se a meu lado/ como numa fotografia”. O sujo, tema que
abriu o caminho do sucesso a Gullar junto aos críticos, em oposição a outros
poetas (eles também são cultura, “suja”, mas cultura, nessa pobre cultura
brasileira), reaparece na série “Bananas podres”, de um modo – permito-me –
sentimental: “… e num alarido/ aquelas pobres frutas/ − com prazo vencido
–/ vão aos soluços/ perder-se na desordem”. A pieguice (que muitos consideram
poesia e é de se respeitar essa opinião) reaparece em “a morte não tem falta de
nada/ não tem nada/ é nada/ a paz do nada”. A maior parte dos poemas de Gullar
de Em alguma parte alguma é abstratizante: sua oração subordinada
coloquial se resolve, muitas vezes, em metáforas inalcançáveis: “estamos dentro
de um dentro/ que não tem fora/ e que não tem fora porque/ o dentro é tudo que
há”. A voz de Cabral ressurge, como a de Drummond, seguidamente: “… isto é/ uma
pera/ pintada/ não cheira” (“Figura-fundo”). É a flor que é a palavra flor. O
tom elevado, combinado com o coloquialismo, se lê, por exemplo, em: “… Lá fora
estende-se o presente rumoroso/ a crescer com o tráfego urbano e o pulsar do
coração/ O passado sou eu” (“Volta a Santiago do Chile”). Se poesia é dissenso
e se não há mais uma poesia brasileira, orgânica, pulsante, mas somente existem
alguns poetas, talvez Gullar tenha, com toda a dignidade, razão.
Não porque,
sejamos francos, “copie” – nesse “álbum de colagens” – tantos temas e tratos
dos “monstros sagrados” Cabral e Drummond, visando, à evidência, exibir-se ao
leitor como “o maior poeta brasileiro em atividade”. Afinal, Gullar, em que
pese toda a enorme irregularidade de sua obra, que comporta de Luta
corporal, passando pelo Poema sujo, a momentos baixos como “Ode a Tancredo
Neves”, tem, ou teve, uma dicção própria ele também, notadamente nos dois
primeiros aqui elencados. Entre a morta poesia viva de agora e a viva poesia
morta de outrora, é para ela que se volta. Mas por que, então, não retorna ao
próprio Gullar, entre os muitos que há? Talvez porque o diálogo com os mortos
seja hoje a única forma lucrativa de se escapar da “lógica” do risco, inerente
à própria poesia.
* Publicado inicialmente na Revista Sibila.
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