Horto, de Auta de Souza
Por Pedro Fernandes
Horto em edição mais recente publicada pela Editora de Universidade Federal do Rio Grande do Norte |
Não faz muito tempo que ministrei um minicurso cuja temática era a obra da poeta potiguar Auta de Souza. Pelo desfecho dessa atividade produzi um texto intitulado Auta de Souza in verso e [re] verso, sob o onírico e o etéreo, reflexões poéticas que foi publicado na revista eletrônica Mafuá. Hoje, retomo a poeta para falar de seu livro - Horto.
A literatura de Auta de Souza ficou conhecida naquela época dentro e fora do Estado, tendo ela figurado em várias rodas literárias, chegando a ser incluída no rol das antologias e manuais de poesia das primeiras décadas do século passado. Prova disso são os prefácios à 1ª edição do seu Horto, 1901, assinado por Olavo Bilac e à 3ª edição, 1970, assinado por Alceu Amoroso de Lima, o Tristão de Ataíde, denotando que a poeta não se resumiu apenas ao cenário da literatura potiguar. Horto advém do manuscrito Dhálias, de 1893-1897.
Há ainda quem diga que a obra da poeta encontre-se contaminada invadida por suas experiências vividas chegando mesmo a comprometer o lirismo e o valor estético de seus versos. Mas não é bem assim. Em toda e qualquer obra de um poeta, temos manifestada uma personalidade muito mais coerente e onipresente do que a da pessoa tal qual a vemos ou conhecemos em situações cotidianas, uma vez que toda visão de que a arte é auto-expressão, pura e simples transcrição de sentimentos e experiências pessoais é falsa. O que não é diferente em Auta. Mesmo havendo uma relação entre a sua poética e a sua vida, isso não deve ser interpretado com que o sentido único da sua obra a ponto de entendê-la como mera cópia da sua vida; a obra literária só pode ser considerada pessoal metaforicamente. Sem falar que “não há grande texto artístico que não tenha sido gerado no interior de uma dialética de lembrança pura e memória social; (...) de percepção singular das coisas e cadências estilísticas herdadas no trato com as pessoas e livros", conforme assinala Alfredo Bosi em Céu e inferno. Isto é, de uma forma ou doutra, traços de sua vida enquanto poeta, serão refletidos pelo seu eu-lírico interferindo no seu momento de produção poética. Em Auta de Souza vida e obra entrelaçam-se numa quase consistente unidade.
Ao longo dos mais de cento e quarenta poemas que compõe a sua obra enxergamos uma poeta submersa numa luta com as palavras e com a vida; sua linguagem poética, assim como se é de praxe ao gênero poesia, está permeada de imagens, começando e terminando com as figuras mais simples, como bem definiu Olavo Bilac, no prefácio à sua obra: “um livro de uma tão simples e ingênua sinceridade (...) o labor pertinaz de um artista, transformando as suas idéias, as suas torturas, as suas esperanças, os seus desenganos em pequeninas jóias.” A temática da morte e a infância passa e perpassa, parafraseando Alceu Amoroso no prefácio à terceira edição do Horto, uma dupla sombra, negra e branca de dor e de angelitude.
De modo convencional, não podemos definir apenas e exclusivamente o fazer poético de Auta como aquele que rompe com o modo convencional de perceber, de ver, de julgar, aquele no qual T. S. Eliot define como o que faz ver às pessoas, o mundo com os olhos novos ou descobrir novos aspectos deste, mas a poeta carrega em seu universo lírico o uso da palavra semantizada por natureza, faz re-emergir da sua fonte – a vida – sensações, imagens, ideias, tudo num constante interagir com tudo.
Trata-se de uma obra que não se é reduzida a uma visão unívoca; o próprio título do livro pode aqui ser entendido como um espaço psicológico semelhante ao espaço concreto vivido pelo Cristo, metaforizado num eu-lírico que divaga por um momento de extrema solidão. Assim entendemos que a sua poesia marca-se por dois vetores: um na viagem para a infância, vertente onírica, e de devaneio; outro na viagem etérea, marcada por um percurso ascensional intimamente relacionado com a idéia de espiritualização, por um processo amoroso para consigo mesma, no entanto, voltada ao ultrapassar das fronteiras individuais, apontada numa imitação do divino; e na viagem post-mortem, as quais parecem obedecer a uma espécie de jogo dialético de ascensão e queda, de trevas e luz, tudo não desprovido dum certo misticismo religioso.
Às suas viagens, Auta de Souza parece retornar, numa margem – vetor horizontal –, a um universo de valores ligados ao mundo da infância, revelando um tom nostálgico de tempo perdido, espécie de refúgio, albergue onde pousa um espírito carregado das possibilidades latentes de recomeço e também de ilusão, caracteres românticos, em ritmos variegados, mas em consonância consigo mesma: o tom de que essas reminiscências encontram-se ancoradas no convívio com o divino numa espécie de comunhão santificadora; noutra margem – vetor vertical –, o ascender por um universo post-mortem, a poetisa mergulha numa busca infinda pela luz, pela redenção, que pode ser aqui entendida como enriquecimento espiritual, mola propulsora ao renascer através da valorização do sofrimento, oscilando entre o martírio e a esperança de alcançar o divino, percurso ora frustrante, ora iluminado por um resto de esperança imposta de forma convincente.
Ao introduzir seu livro com o poema "No horto" é como se a poeta demarcasse um lugar físico e concreto de onde há de vagar seu eu-lírico nesse ínterim de viagens. Aí o cenário se confunde com mesmo onde Cristo teria sofrido suas últimas agruras, como nos sugere Tarcísio Gurgel. Numa espécie de coro o eu-lírico vê-se só, submerso na penumbra, neste está consigo mesmo, neste possível encontro com a morte, mostram-se resquícios do medo, pede proteção ao Cristo através da oração, “Jesus amado, reza comigo.../Afasta a noite, doce Senhor!”.
O que se segue é um diálogo entre ela e o Cristo, o tempo-espaço encontram-se fundidos, conexo e desconexo. Fundidos porque o medo espiritual ainda é inerente, operante ao espírito da poeta para o que verá do futuro, semelhante ao Cristo antes da crucificação. Ao mesmo tempo em que se fundem, dilatam-se o tempo-espaço: conexo, porque sua vida e o momento que vive colocam-se muito próximo do divino; e, desconexo porque essa proximidade entre terreno-celestial é fátua, a própria forma como aparecerá a imagem de Jesus, suspensa, quebra parte dessa conexão: “Ergui os olhos para o céu lindo:/Vi-o boiando num mar de luz...”.
Envolta numa espécie de devaneio, êxtase espiritual a poeta no encontro apocalíptico com o Cristo recobra suas esperanças ao mesmo tempo em que renova os pedidos de conforto, proteção e amparo na caminhada que ainda lhe falta para a morte, simbolizada pela cruz; enquanto a morte não lhe vem, a fim de manter-se de maneira aproximada com o divino iniciará o eu-lírico uma viagem ao mundo infantil, rememorará seu passado antes da busca pela redenção.
Nessa dimensão a cruz apresenta-se como elemento importante porque o próprio trajeto percorrido juntamente com o ainda a ser percorrido pelo eu-lírico pode ser assim tracejado, onde: o braço horizontal abarca o retorno ao mundo infantil e o braço vertical a ascensão post-mortem, ou seja, o cruzamento de tempos não justapostos, onde a intersecção significa o divino, único comum a ambas as viagens. Além de que ela também remete à dor, ao sofrimento, porém necessários à travessia vida – morte; travessia para a morte, mas a morte em Auta comporta-se como uma espécie de renascer.
* Texto composto de notas de "Auta de Souza in verso e [re] verso, sob o onírico e o etéreo, reflexões poéticas", publicado na Revista Mafuá. Para ler o texto na íntegra, clica aqui.
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