Clarice Lispector

Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou um o quê? Um quase tudo.
(Clarice Lispector citada por Nadia Battella Gotlib, Clarice, uma vida que se conta)

... eu só escrevo quando eu quero, eu sou uma amadora e faço questão de continuar a ser amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever, ou então em relação ao outro. Agora, eu faço questão de não ser profissional, para manter minha liberdade.
(Clarice Lispector, entrevista a Júlio Lerner, 1977)

Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada.
(Clarice Lispector, A descoberta do mundo)

Clarice Lispector, 1961. Foto: Claudia Andujar


Clarice Lispector nasceu em Tchelchenik, na Ucrânia, em 1920; chega ao Brasil com os pais e as duas irmãs aos dois meses de idade. A família se instala em Recife, capital de Pernambuco, e logo morre a mãe; a menina cujo diferente nome que mais tarde será destratado e depois reconhecido, nome que diz algo com flor no peito, conta com nove anos. A circunstância da morte de Mania Krimgold força os Lispector a se mudarem para o Rio de Janeiro.

Todo o restante da sua vida - afora as várias viagens e moradas noutros países na companhia do marido, então diplomata - se realizará na antiga capital do país. A infância é envolta em sérias dificuldades: além das afetivas, as financeiras. Muito cedo começou a trabalhar como professora particular de português; dedicada, é aprovada para o curso de Direito, embora nunca venha a exercer a profissão.

O envolvimento com as atividades de redatora na Agência Nacional continuam a empurrar Clarice para um território que também se desenvolve precocemente: a escrita. Sabe-se que, ainda menina gostava de fabular e criara uma história aumentada todos dias, sem um fim. No jornalismo, esse fio parece se prolongar. É neste meio que desenvolve amizades com diversos nomes da literatura brasileira, como Antônio Callado, Hélio Pelegrino, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Alberto Dines e Rubem Braga. Tal proximidade favorece sua vivência noutros jornais; A noite será o primeiro deles.

No mesmo ano que escreve seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, em 1943, conhece e se casa com Maury Gurgel Valente. Esse convívio dura quinze anos, pontuados por uma vida agitada - tempos depois Valente inicia suas atividades na diplomacia - e por dois filhos. A estreia literária da Sra. Clarice é logo reconhecida; ainda que não seja uma unanimidade entre os críticos, o livro vale o prêmio da Fundação Graça Aranha. Também não sobrou muito tempo para saber in loco sobre o destino do livro; aqui, só voltará, por um mês, três anos depois para publicar O lustre.

A difícil vida de madame, distante do Brasil e sem a total liberdade para sua grande paixão, não são empecilhos para se manter firme no seu propósito. Sai A cidade sitiada em 1949 e uma década depois vem a separação. Neste tempo de casada. também integra o correio diplomático do Ministério das Relações Exteriores, desenvolve textos próprios ou traduções, para meios como a revista Vamos Ler!, Jóia e  Jornal do Brasil. Mas, depois, vem o tempo de maior efervescência criativa; passa a colaborar assiduamente para os jornais A manhã e Correio da Manhã, onde assina uma coluna de trivialidades femininas com o pseudônimo de Helen Palmer; esse projeto continua depois no Diário da noite, agora como a atriz Ilka Soares. 

E entre atividades no jornalismo e nas traduções, constrói sua obra que avança com os livros: Laços de família (1960); A maçã no escuro (1961); A paixão segundo G. H. A legião estrangeira (1964); Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969), Felicidade clandestina (1971), Água viva (1973), Onde estivestes de noite e A via crucis do corpo (1974) e A hora da estrela (1977). A famosa novela de treze títulos sobre uma jovem imigrante nordestina foi publicada no ano da sua morte.

Considerada, por uns, hermética, e por outros, o grande nome das nossas letras, Clarice é uma das escritoras da literatura brasileira moderna-contemporânea mais estudadas em âmbito nacional e internacional. Deixou-nos uma extensa bibliografia que se multiplicou e muito desde pós-1977; afinal só no ano seguinte sai Um sopro de vida, depois A bela e a fera (1979), Para não esquecer (1978) e A descoberta do mundo (1984).

Multiplicam-se também os livros com material acessório e já agora fundamental para se ter um perfil da sua escrita: as cartas, as entrevistas, os artigos para jornais e mesmo as crônicas femininas de Helen Palmer e Ilka Soares trazidas ao público em duas edições publicadas há quatro anos. Na mesma linha, os estudos biográficos, dos quais são fundamentais destacar Eu sou uma pergunta de Teresa Monteiro e Clarice, uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib, duas das mais respeitadas especialistas sobre Clarice e a partir das quais todo um vasto universo se descortina na crítica acadêmica sobre a escritora.

Tal como se lê no verbete sobre a escritora para o site da Fundação Casa de Rui Barbosa, "Clarice colocou no centro da sua criação uma linguagem que busca traduzir a vida interior, uma linguagem para a qual o que mais importa é atingir a sensibilidade do leitor". Sua obra tem repercussão cada vez maior fora do Brasil e por essas características agora ressaltadas é que os leitores começam por integrar esse universo às linhas de força do cânone universal, ao lado de nomes como Virginia Woolf, Franz Kafka ou Katherine Mansfield.

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