O texto por trás do texto


Em 11 de julho de 2010, o caderno Domingo, do jornal De Fato, publicou matéria sobre o escritor português José Saramago. Pela ocasião, escrevi um texto que funcionou como material para a escrita dessa reportagem. Dado o silêncio de vários outros jornais pelo texto que escrevi, resolvi, hoje, publicá-lo por este espaço. Esta matéria deveria ser uma grande homenagem que deveria render ao escritor. Infelizmente o silêncio de outros jornais e o interesse avesso do jornal De Fato em não publicar o texto na íntegra me deixaram cabisbaixos. Digo apenas que uma série de programas estão sendo pensados alguns e preparados outros em homenagem à memória do escritor português, dentre elas, reitero o número especial do Caderno-revista 7faces que será dedicado à poesia do escritor e que segue aberto até o dia fim de novembro próximo o envio de materiais para a edição. Há ainda o minicurso "Diagnósticos do presente em José Saramago, Jorge Reis-Sá e Chico Buarque", que irei ministrar por ocasião do I Colóquio Nacional de Estudos Linguísticos e Literários (I CNELL) que terá lugar entre os dias 06 e 08 de outubro de 2010 no Campus Avançado Professora Maria Elisa de Albuquerque Maia, em Pau dos Ferros (RN).


José Saramago. Foto de Sebastião Salgado

SARAMAGO, ITINERÂNCIAS

por Pedro Fernandes de O. Neto



O escritor

É natural que numa fala sobre qualquer escritor comece-se pelo que diz respeito à criação literária. Não uso aqui o termo “carreira literária” porque fere aquilo que ao longo de toda vida fez o escritor. Para ele, o termo soa-lhe tático, estratégico, calculado e sua constituição em sujeito-escritor se deu muito ao inverso de tais características; “Vim do nada para logo regressar ao nada”, dizia.

Isso porque o primeiro livro que José Saramago publicou – Terra do pecado – passou totalmente despercebido ao olhos da crítica literária da época, 1947. Parece que Portugal estava muito mais envolvido com outros grandes nomes, tais como Alves Redol, que publicara Porto Manso, Fernando Namora (Minas de S. Francisco), Vergílio Ferreira (Vagão J), Miguel Torga, José Régio, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, além da presença de uma leva de nomes já carimbados na literatura como Ferreira de Castro, Aquilino, Tomás de Figueiredo... Também é desse ano a formação do Grupo Surrealista de Lisboa, com Cesariny, O'Neill, António Pedro e José-Augusto França. E, Saramago não estava vinculado a nenhum desses nomes e a nenhum grupo literário. Do contrário. Era simplesmente um mecânico que trabalhava para as oficinas dos Hospitais Civis de Lisboa, após terminar, a muito custo, o curso técnico na Escola Industrial de Afonso Domingues – depois foi ocupar o lugar de escrevente para os Hospitais, certamente porque tinha alguma letra. Se houve fria recepção à obra ou não o fato é que depois de Terra do pecado – que, aliás, deveria se chamar A viúva, mas por decisão do editor da Minerva assim o livro não saiu – Saramago esteve quase vinte anos sem publicar algum texto significativo. Aqui-acolá algum conto em edições esparsas de periódicos portugueses; não mais que isso. Não quer dizer que durante esse extenso silêncio não tenha estado a produzir. Produziu mesmo um romance que até poderá vir a lume, Claraboia.

O homem de Azinhaga

Numa das muitas entrevistas concedidas pelo escritor ele se auto-afirma ainda um camponês. E é essa a memória que perpassa toda a vida e, até certo ponto, a escrita de José Saramago. Desde quando do recebimento do Prêmio Nobel em 1998, que o brilhante discurso evocava a memória de seus avós maternos, José Meirinho e Josefa Caixinha, em toda e qualquer entrevista que o escritor desse era sempre eles de quem mais falava com afeto.

A sua ligação com a terra onde nasceu – em Azinhaga, 1922 – seria mola propulsora à escrita do romance que lhe consagra o romancista que o é Levantado do chão. “Se eu não tivesse nascido naquelas paragens, se não tivesse crescido em contacto com a terra e a gente que dela vive, com todas as suas belezas e servidões – Levantado do chão não existiria. Ou existiria de outra maneira.” Disse certa vez o escritor. Mais tarde, viria publicar As pequenas memórias, um livro que recebeu as memórias dos seus anos de infância e adolescência, cujo cenário inicial evocado, é a Azinhaga.

Os romances

É Levantado do chão assumidamente seu romance de estreia. À época, José Saramago já havia deixado as oficinas mecânicas, passado a escriturário, editor, crítico literário, e publicado oito livros: Os poemas possíveis (1966), Provavelmente alegria (1970), Deste mundo e do outro (1971), A bagagem do viajante (1973), As opiniões que o DL teve (1974), O ano de 1993 (1975), Os apontamentos (1976) – os dois primeiros e o livro de 1975, poesia, os demais, crônicas resultadas da sua intensa vida nos jornais portugueses, sobretudo, Diário de Lisboa, Diário de Notícias, no qual foi editor-chefe e diretor adjunto, A capital e o periódico Jornal do Fundão. Além desses, publicara o romance Manual de pintura e caligrafia, em 1977, a reunião de contos Objecto quase, no ano seguinte, e a peça de teatro A noite, em 1979 – obra que lhe valeu o primeiro prêmio como escritor. Levantado do chão, ainda assim lhe é um romance de estreia porque é nele que se “inaugura” o que ficou conhecido como estilo saramaguiano: uma forma típica de narrar, com um narrador à parte, que preserva o fôlego da oralidade no trajeto de escrita, fazendo do texto literário “exercício muscular” (usando termos do escritor na entrevista dada a Carlos Reis em 1997), forma escorreita, impossível de à primeira vista precisar momentos de narração, falação ou volição psicológica do narrador e da personagem.

Uma característica marcante da escrita de José Saramago reside na própria materialidade do seu fazer literário e sobretudo na galeria de personagens que engendrou ao longo de mais de duas dezenas de romances: o pintor H., do Manual de pintura e caligrafia, a família dos Mau-Tempo, do Levantado do chão, Baltasar e Blimunda, do Memorial do convento, a mulher do médico, do Ensaio sobre a cegueira, entre tantos outros nomes.

Dessa leva de romances, indispensáveis são aos leitores, além do Levantado do chão, Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis, A jangada de pedra, O Evangelho segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a cegueira. Desses, é necessário falar, em particular, d'O Evangelho. O romance é o marco inicial do diálogo – nunca harmonioso – que José Saramago teceu, ao longo de sua carreira, com os discursos das religiões cristãs. À época, o romance foi censurado pelo Governo português a não concorrer o Prêmio Literário Europeu; o parecer dava contas de que a obra era imoral e feria os bons costumes cristãos do povo português. Isso tudo porque o livro apresenta um Jesus “nascido como todos os filhos homens, sujo de sangue de sua mãe, viscoso de suas mucosidades”. Lógico que o embate que o Estado vem travar com o escritor não reside apenas no fato de um Jesus humano. Na verdade, Saramago é responsável por reintroduzir outras forças contrárias ao discurso comum.

Saramago e mundo

Essa querela entre igreja-escritor só vem recobrar um fator: em vida, Saramago teve o mesmo fôlego do “engagement” das suas personagens. Nas entrevistas pós-Nobel dizia sempre querer falar o menos possível sobre Literatura. E falou de tudo: meio ambiente, política, economia, educação, sociedade, religião... Incansável lutador pelas causas humanas até o último instante de sua vida. Prova é que antes de sua morte, agora em 2010, deixou carta para Academia Sueca votando em Baltasar Gárzon ao Prêmio Nobel da Paz por sua luta pela memória dos desaparecidos nos regimes ditatoriais no continente europeu.

Falas polêmicas, muitas delas, mas Saramago não foi um polemista, tampouco um agitador de massas, como foi tristemente definido recentemente pelo L'Osservatore Romano, jornal do Vaticano; foi antes, um desassossegador, no bom sentido do termo cunhado pela heteronímia de Fernando Pessoa. O tempo inteiro foi um incontido com a realidade e um sonhador: sonhava com um mundo de justiça. E foi único ao por em xeque os discursos tortos, cerceadores, difíceis de digerir, difíceis mais ainda de conviver com eles; na sua incontinência e no seu sonho residia o interesse de por em órbita uma liberdade de pensamento até chegar ao ponto de afirmar numa das suas últimas entrevistas quando do lançamento de seu último romance, Caim, que a Declaração os Direitos Humanos devia reservar o direito a heresia e a dissidência.

Sua perda configura-se numa das maiores para a humanidade desse início de século. Não há nenhum exagero nessa afirmativa. Quando uma voz que grita do lado contrário dos ecos comuns cala-se, o mundo fica mais pobre. Ainda mais num mundo em que vai se alastrando a decomposição da mentalidade humana e da capacidade de diferir os tons diversos e enviesados da realidade que ocupamos; uma humanidade cada vez mais cega e embrutecida pelo comum, a corriqueirice, a banalidade de si – tudo fruto de discursos bestiais que prometem salvação e o que dão é o estabelecimento de guetos sociais.

Deixou-nos entretanto um legado: o de que para viver nesse mundo há que ser sempre um inconformado, porque a rotina cansa, castra e depois cospe fora fatos esvaziados. Há que sempre remar contra maré, porque sábio não é o que se contenta com o espetáculo do mundo, sábio é o que se questiona sobre ele.


Nota: As falas do escritor são da entrevista concedida a Beatriz Berrini e publicada no livro Ler Saramago: o romance, publicado em 1998, pela editora portuguesa Caminho.

Ligações a esta post:
>>> Para ler a matéria publicada pelo caderno Domingo, do jornal De Fato, clica aqui.

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