As sete últimas palavras de Cristo na cruz, por José Saramago
Bosch. Cristo carregando a cruz (detalhe). |
Em 2007 a gravadora AliaVox editou a gravação de As sete últimas palavras de Cristo, de Joseph Haydn (1732-1809) pela Orquestra Le Concert des Nations; a pedido de Jordi Savall, diretor, maestro e compositor, José Saramago escreveu parte dos textos que compõem o catálogo do CD. Este é um dos últimos textos do escritor português, executado depois do árduo trabalho de pesquisa em que retoma fios do seu O Evangelho segundo Jesus Cristo. O texto não é uma explicação do trabalho do compositor austríaco, mas um acréscimo. O trabalho de Haydn foi composto por encomenda do Arcebispo de Cadiz para a Sexta-feira da Paixão de 1785 e mescla tragédia e melancolia ao sublime e à misericórdia a fim de recuperar certa natureza humana de Jesus, algo que se reveste, perfeitamente, no evangelho de Saramago.
Palavra Primeira
Deus, Pai, Senhor, aqui me tens. Aqui me tens, finalmente,
neste monte escalvado a que chamam Gólgota e aonde, passo a passo, vieste
encaminhando a minha vida a fim de que todas as profecias fossem cumpridas. Sou
o da cruz alta, a que está ao centro, e os homens que me fazem companhia, um de
cada lado, são dois ladrões vulgares, daqueles que se contentam com roubar
pouco, que se fossem dos que roubam muito de certeza não viriam aqui
crucificados. O que está à minha direita protesta que não quer morrer, grita
como um doido furioso, dá arrancos com o corpo como se pretendesse arrancar a
cruz do chão e fugir com ela às costas, ao outro já o vejo resignado, tem a
cabeça descaída, apenas geme. Penso que terei de lhe dizer alguma coisa que o
console antes que isto se acabe. O bom que tem este lugar para os condenados é
ser Jerusalém a última imagem que levam da vida. Não estamos sós. Entre os
soldados romanos, os doutores da lei, os chefes dos sacerdotes, os anciãos, e a
gente comum que acudiu ao espectáculo, distingo, embora mal porque as dores me
estão nublando os olhos, minha mãe com algumas mulheres, e também, sim, está
também Maria Madalena. E está João, mas aos outros não os vejo, terão fugido. À
morte deveria assistir-se em silêncio, não este clamor de insultos, esta
gritaria, este ódio insensato, estas palavras de escárnio: “Salva-te a ti mesmo
se és o rei dos judeus, lá está aquele que deitava abaixo o templo e tornava a
reconstruí-lo em três dias, que desça agora da cruz para nós vermos e
acreditarmos nele”. Deus, Pai, Senhor, era isto necessário? Não te bastava a
simples morte? Já que terei de perder a vida, perdoa-lhes tu o alvoroto, porque
não sabem o que fazem. E eu? Virei a saber o que fiz no mundo? E tu, Deus, Pai,
Senhor, tens a certeza de que tudo o que fizeste foi bem feito?
Palavra Segunda
Deus, Pai, Senhor, não sei como o poderei confessar, tão
confundido e humilhado sinto o meu espírito. Compadecido do sofrimento do
ladrão manso, não encontrei nada melhor para o consolar que prometer-lhe o
paraíso. “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”, foram as minhas formais
palavras. Mas logo me perguntei se a soberba, ou o orgulho, ou a vaidade, foi o
que me levou a prometer algo que não estava em meu poder dar. Antes, numa das
suas fúrias, o ladrão bravo tinha-me invectivado: “Então não és o Messias?
Salva-te a ti mesmo e a nós!” Mas o ladrão manso repreendeu-o com estas justas
palavras, em verdade inesperadas em pessoa da sua condição: “Não tens temor a
Deus, tu que estás a sofrer a mesma condenação? Nós estamos aqui a pagar o
justo castigo pelos actos que temos praticado, mas este não fez nada de mal”. E
foi aí, Deus, Pai, Senhor, que caí em tentação: “Hoje mesmo estarás comigo no
paraíso”, disse. Como pude eu esquecer-me do Juízo Universal que, esse sim, há-de
separar o trigo do joio, o bom do mau, o virtuoso do pecador? Como pude
esquecer o que disse o profeta: “Eu, o Senhor, penetro no íntimo do homem, e
examino o seu coração, e a cada um dou segundo o seu procedimento.”? De todo
modo, sou escravo da minha promessa, este homem irá comigo, comigo se
apresentará à tua porta, e tu, Deus, Pai, Senhor, se quiseres receber-me a mim,
terás também de recebê-lo a ele, porque eu, sozinho, não entrarei. Honra a
promessa que fiz, já que neste suplício me desonraste.
Palavra Terceira
Deus, Pai, Senhor, quando, para castigar a prosápia dos
homens que estavam levantando aquela torre com a intenção de chegar ao céu,
lhes desordenaste a linguagem, talvez não tenhas pensado em todas as
consequências do acto a que foste movido por uma ira semelhante à do dono da
vinha quando dá por que os meliantes se dispõem a assaltá-la. Talvez este
pensamento, na aparência fora de lugar, seja fruto do delírio, da angústia e
das terríveis dores que me trespassam, mas, nesta hora última da minha passagem
pela terra, não estaria bem que entre pai e filho ficassem coisas caladas.
Aquela mulher que além vês, entre João e Maria Madalena, é minha mãe, tu o
saberás melhor que ninguém. Nunca vi que lhe tivesses dado atenção em todos
estes anos, mas não é disso que quero falar. O meu pensamento é outro. Quando
confundiste a linguagem dos homens, houve palavras que se perderam, outras que
tomaram caminhos desviados, outras que deixaram de pertencer a quem, tempos
atrás, havia sido seu legítimo proprietário. Houve uma época, talvez na idade
de ouro, falando a língua que tu confundiste, em que as mulheres podiam ser tão
justas e piedosas quanto os homens fossem capazes de o ser, mas já não o eram
quando eu vim ao mundo, porque, em hebraico, por exemplo, para justo e piedoso
não há formas femininas equivalentes. Tendo eu que nascer forçosamente de uma
mulher, como foi possível, Deus, Pai, Senhor, não teres reparado que ela não
podia ser digna de me gerar, uma vez que não era piedosa nem justa? Rogar-te-ei
que mo expliques quando nos encontrarmos. Não vejo nenhum dos meus irmãos. E
aquele João, já não sei eu bem se é o meu discípulo, se o filho de Zebedeu, que
tem o mesmo nome. Como quer que seja, vou dizer a frase que de mim se espera:
“Mulher, aí tens o teu filho. João, aí tens a tua mãe.” Oxalá se dêem bem.
Palavra Quarta
Deus, Pai, Senhor, as palavras atropelam-se na minha cabeça,
a ponto de já não saber se serão realmente minhas ou se as terei lido ou ouvido
em alguma parte, e agora não faça mais que repeti-las de maneira mecânica, como
uma criancinha que a duras penas aprende a falar. Pelo menos, tenho a certeza
de que as palavras que irei proferir me sairão da boca somente para que se
possa anunciar amanhã que as escrituras foram cumpridas uma vez mais. Escuta-as
e diz-me se não tenho razão: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Quem
me ouvir pensará que esta é a primeira vez que tu abandonas alguém e que por
isso é de justiça que a pergunta seja lançada aos quatro ventos do alto desta
cruz, como um aviso às pessoas. Mas tu, Deus, Pai, Senhor, desde o princípio do
mundo que criaste não tens feito outra coisa que abandonar-nos. Recorda aqueles
a quem, por causa de uma maçã e uma serpente, expulsaste do paraíso terrenal,
recorda o espírito vingativo com que puseste diante da porta os querubins e uma
espada de fogo para que eles não pudessem regressar. Crês tu, Deus, Pai,
Senhor, que ao menos uma vez na vida, e em muitos casos todos os dias e a todas
as horas, a espécie humana não teve motivos para fazer esta mesma pergunta:
“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”? Que estás longe, dirás, que não
podes acudir a tudo, que o homem foi feito para que governasse a sua vida sem
depender de deus ou deuses, mas em teu nome, quando não tu mesmo, há quem
afirme que nascemos servos e servos seremos até ao fim da vida porque tu és a
causa primeira e porque, ao mesmo tempo que nos vai abandonando um a um, nos
manténs agarrados na tua mão. Eu próprio te fiz a pergunta e tu não
respondeste. Razão tinha aquele que disse que Deus é o silêncio do universo e o
homem o grito que dá sentido a esse silêncio. Acabe-se o homem e tudo se
acabará. Abandonados já estamos, eles, eu, talvez também tu, que nem a ti
próprio te podes valer. Até para alegadamente salvar a humanidade tiveste que
derramar o meu sangue.
Palavra Quinta
Deus, Pai, Senhor, ainda que possa parecer extraordinário,
ou mesmo incrível, que alguém à beira da morte, tal eu estou, sinta sede e
imagine ter tempo e forças para beber um vaso de água, foi isto o que acabou de
suceder. Talvez, em realidade, eu não tivesse autêntica sede, talvez tivesse
sido apenas a recordação súbita da frescura de uma água que para sempre iria
perder, a sensação de senti-la a descer por uma garganta que em breve se
cerraria, o que me fez soltar aquele grito: “Tenho sede!” Sem que eu o
esperasse, quase imediatamente uma esponja molhada me tocou a boca e o sabor da
água misturada com vinagre me restituiu por um instante o alento. Olhando para
baixo vi um homem que segurava uma cana, esta a que veio atado o misericordioso
socorro, porque bem sabemos, os que nunca tivemos gelo para refrescar a água
nas canículas do verão, que juntar-lhe um pouco de vinagre é remédio infalível
para as piores sedes. O homem baixou a cana, tornou a empapar a esponja, e
outra vez ma fez chegar aos lábios. Depois, porque os soldados romanos se
acercavam com as suas lanças e faziam gestos ameaçadores, o homem retirou-se,
segurando a cana ao ombro e levando o balde da água e vinagre na outra mão. Foi
isto o que se passou e não qualquer outra história que venha a contar-se no
futuro, como se o sofrimento de quem foi condenado a morrer na cruz não fosse
já bastante para encher o livro. Talvez a alguém se lhe ocorra escrever, e por
todos os modos repetir, que quiseram dar-me vinho misturado com fel ou com
mirra. Não é verdade. E agora, Deus, Pai, Senhor, peço-te um último favor. Que
não faças esperar este homem até ao dia do Juízo Final, que o chames a ti no
preciso momento em que morrer, e que tu mesmo o vás receber à porta do paraíso.
Reconhecê-lo-ás facilmente. Leva uma cana ao ombro e um balde com água e
vinagre na outra mão.
Palavra Sexta
Deus, Pai, Senhor, tudo está cumprido. A cruz em que me
pregaram não tardará a ter um cadáver nos seus braços, tal como, desde o
princípio do mundo, foi por ti decidido que haveria de suceder. Será, por ser a
minha, suficiente esta morte para a salvação da humanidade? Para salvá-la de
quê ou de quem? De si mesma? Do inferno que tu mesmo fabricaste, uma vez que
não havia mais ninguém que o pudesse fazer? Sou eu o cordeiro que Abel te
sacrificava, ao mesmo tempo que desprezavas o trigo e o centeio que Caim te
oferecia? Porquê? Não terás sido tu, Deus, Pai, Senhor, quem armou a mão de
Caim para que na primeira página da história dos homens se anunciasse já o
futuro que lhes estava guardado, sangue, morte, destruição e tortura desde esse
dia e para sempre? E porquê ficou o crime de Caim sem castigo? Porquê teve Abel
de morrer? Conhecerás tu, Deus, Pai, Senhor, o sentimento do remorso? Porquê,
contra a simples justiça, prosperou o assassino, ao ponto de fundar uma cidade
e ter descendência como qualquer homem comum, com as mãos limpas de sangue
alheio? Sem querer faltar ao respeito, foste e serás sempre um deus dúplice,
com duas caras, dois pesos e duas medidas.
Não creio que a minha morte vá servir para que os homens se
salvem nem que, sem ela, se perdessem mais do que já estão. Não imaginas, Deus,
Pai, Senhor, como os seres humanos são complicados e difíceis de entender. Seja
como for, fiz tudo o que tinhas ordenado. Por isso está morrendo um homem nesta
cruz.
Palavra Sétima
Deus, Pai, Senhor, nas tuas mãos entrego o meu espírito, que
a carne que o continha, essa, ficará agarrada a este madeiro enquanto o que de
mim resta não for levado ao túmulo, donde ao terceiro dia ressuscitarei, se
foram certas as palavras que puseste na minha boca para que as ouvissem os que
me seguiam. Censurou-mas Pedro, que me chamou de parte e disse: “Deus te livre
de tal. Uma coisa assim nunca te há-de suceder.” E eu respondi-lhe: “Sai da
minha frente, Satanás. Impedes-me o caminho, porque não entendes as coisas à
maneira de Deus, mas à maneira dos homens.” Foi isto o que eu lhe disse, mas
agora, Deus, Pai, Senhor, agora que o meu espírito já deve ter chegado às tuas
mãos, permite-me que procure, também eu, entender as coisas à maneira dos
homens. Poderá o meu corpo, sem um espírito que o anime, levantar-se e sair do
sepulcro, arredando a pedra que lhe tapa a entrada? E outra pergunta mais. Que
sucederá comigo durante esses três dias? Apodrecerei? Será já com os primeiros
sinais de podridão na cara e nas mãos que me apresentarei diante de Maria
Madalena? Vivi no mundo como homem durante trinta anos, primeiro criança,
depois adolescente, depois adulto, até este dia. Se te digo coisas que estás
farto de saber, é para que compreendas por que razão aparecerei a Maria
Madalena antes que a qualquer outro.
Acabámos. Representei o meu papel o melhor que podia. O
futuro dirá se o espectáculo valeu a pena. E agora, Deus, Pai, Senhor, uma
última pergunta: Quem sou eu? Em verdade, em verdade, quem sou eu?
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