Ferreira Gullar, Prêmio Camões 2010
Depois do cabo-verdiano Arménio Vieira, o título do Prêmio Camões vai para um dos mais importantes nomes da literatura em língua portuguesa, Ferreira Gullar distinguido, no último dia 30 de maio de 2010, por um trabalho literário que incorpora produções na área do romance, da poesia e da dramaturgia. A novidade é que o escritor anda a preparar seu novo livro, já de título - Em alguma parte alguma.
Abaixo, deixamos um texto do poeta "Poesia e Realidade" seguido de um vídeo apresenta o poeta lendo um trecho do seu mais famoso texto, Poema Sujo, de 1975.
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Não pode nenhum poeta - nem ninguém - ter a pretensão de estabelecer rumos e regras para a poesia. Não resta dúvida de que a poesia, como qualquer outro fenômeno social, está sujeita a determinações do espaço e do tempo históricos mas o modo como essas determinações atuam sobre a produção do poema é absolutamente impossível de prever-se. O estudo das escolas e estilos literários indica a presença de traços comuns que caracterizam determinados períodos: a ocorrência desses traços não se explica cabalmente se não os relacionamos com o conjunto do processo social. A imprevisibilidade a que me referi decorre, não apenas do fato de que, neste campo, as relações de causa e efeito se dão através de complexíssimas mediações, mas também devido à intervenção de um fator individual que é a personalidade do escritor. Se é verdade que essa personalidade também sofre as influências do momento histórico que inegavelmente a condiciona, não é menos certo, por outro lado, que quanto mais criadora for essa personalidade, menos passivamente se comportará em face desse condicionamento. Pode-se afirmar, portanto, que, levadas em conta as condicionantes histórico-culturais, o fator decisivo na criação literária e artística é a personalidade do autor. Reside na inesgotável riqueza de interações dessa personalidade com o universo de significações sociais, afetivas e culturais, a possibilidade de surgimento da obra poética. Por isso mesmo, a criação literária, sem ser original em termos absolutos, não se pode realizar segundo ditames impostos ao escritor. A liberdade é condição primeira para o exercício da literatura. O autor é, até ponto em que a própria matéria não o ultrapassa, o único árbitro das decisões.
Tais considerações, está claro, não pretendem sugerir a onipotência do poeta mas, antes, por um lado, afirmar a sua responsabilidade pessoal e social em face da obra e, por outro, marcar o caráter inevitavelmente limitado de sua expressão. O poeta fala dos outros homens e pelos outros homens, mas só na medida em que ala de si mesmo, só na medida em que se confunde com os demais. Depende, portanto, de sua personalidade - do grau de abertura dessa personalidade com respeito à sua época, com respeito à vida que se vive à sua volta, do modo como relaciona seus problemas e sentimentos aos problemas e sentimentos dos outros homens - o caráter de sua poesia. E nem sempre será melhor ou mais significativa a poesia que mais se volte para mundo de todos. É imprescindível que esse mundo de todos não seja uma abstração, uma simples referência, mas o mundo do poeta. E pode também um poeta, centrado em sua experiência subjetiva, individual, falar por muitos. É da própria natureza da arte romper os limites da solidão, ainda que seja abismando-se nela, transcendendo-se por baixo.
A minha experiência de poeta é, portanto, uma entre muitas outras. Não é e não pretende ser uma experiência exemplar. Confunde-se com minha vida que, por sua vez, confunde-se com a vida de muitas outras pessoas e, em certa medida, com avida de minha cidade, de meu país, de minha época. É inevitavelmente uma parte minúscula destes dias vertiginosos e freqüentemente cruéis que vivemos. Talvez por isso não seja uma poesia doce e alada mas áspera e suja, que não se quer valer de nenhuma ilusão mas que, sob a noite e a lama, não renuncia à esperança, uma mínima esperança.
Quando digo que minha poesia se confunde com minha vida digo o que qualquer outro poeta diria de sua própria poesia. Faço-o, no entanto, aqui, para sublinhar o fato de que, em minha experiência, o trabalho poético sempre esteve comprometido com indagações que o antecedem e transcendem. Fazer o poema sempre foi, para mim, a tentativa de responder às indagações e perplexidades que a vida coloca. Não quis, ou não pude, buscar nele o píncaro serenamente erguido acima do drama humano. Antes, quis fazer dele a expressão desse drama, o ponto de ignição onde, se for possível, alguma luz esplenderá: uma luz da terra, uma luz do chão - nossa.
Talvez tudo isso tenha começado numa tarde quente, em São Luís do Maranhão, num pequeno quarto da casa do quitandeiro Newton Ferreira, à rua Celso de Magalhães, 9. Eu lia, num volume encardido, comprado num sebo, um conto de Hoffmann. O quarto era sombrio mas eu sabia que lá fora a tarde passava espantosamente iluminada. Interrompi a leitura, tomado subitamente de um pensamento doloroso: "Hoffmann escreveu estes contos que vieram parar num sebo de São Luís do Maranhão e que anda têm a ver com a minha vida." Olhei de novo aquelas páginas amarelecidas, cobertas de letras que foram um dia a voz viva de um homem. "Que sentido tem fazer literatura?" - me perguntei, como se me apunhalasse. E, depois de algum tempo, respondi: "O poema, ao ser feito, deve mudar alguma coisa, nem que seja apenas o próprio poeta. Se o poeta, depois de fazer o poema, resta o mesmo que antes, o poema não tem sentido."
Esse foi um momento decisivo na minha experiência, mas chamo atenção para o fato de que o passo que dei não foi dado pelo poeta Ferreira Gullar e sim pelo leitor José Ribamar Ferreira. É certo que o leitor, neste caso, estava montado na (ainda que pouca) experiência e nas aspirações do poeta. Não obstante, foi no ato de ler e não no ato de escrever que a minha visão da literatura subitamente se configurou. Já não pude, a partir daquele instante, ser a mesma pessoa.
Procuro entender o que se passou naquela tarde. Um moço de 20 anos com um livro encardido nas mãos enquanto fora da casa, à sua volta, fremia a vida, dos mangues da Baixinha às lojas e bares da praça João Lisboa. Um moço, já abandonado pela infância, buscando agora nos livros o sentido daquele mundo de sol e água, de vento e árvores, que fora outrora o seu reino feliz. Mas o livro de Hoffmann não recendia a sapoti, não me devolvia o cheiro efêmero das marés. E, no entanto, nas palavras impressas, nas páginas amarelas do livro, eu adivinhava um fogo de vida que necessitava de mim, leitor, para acender-se. E era urgente acendê-lo porque, se algum homem lograra guardar a vida em palavras, então escrever ganhava sentido. O ato de ler, assim, funda a verdade da literatura. Porque, de fato, a página é rasa e a palavra não é mais que um rabisco impresso nela. Só a carência de outro homem pode oferecer um corpo onde de novo se faça vida o que o poeta falou.
No momento em que me disse que a poesia só teria sentido se o ato de escrever fosse capaz de transformar o próprio poeta, está evidente, por um lado, que ainda não se colocava para mim a possibilidade de transformação da sociedade e, por outro lado, já se colocava a necessidade de que a poesia não fosse uma atividade literária inconseqüente.
Que significa, porém, isso de que o ato de escrever deve implicar a transformação do homem que escreve? Significa um tal identificação entre o homem e a linguagem que trabalhar a linguagem é trabalhar o homem, e o poema torna-se desse modo um corpo novo em que o homem se constrói, melhor. E daí por que o livro que escrevi desse período, entre 1950 e 1953, intitula-se A Luta Corporal. Luta porque essa identificação do homem com a linguagem era uma aspiração e não uma realidade conquistada. Luta para transformar a linguagem num corpo vivo, vivo como o meu próprio corpo, denso como um ser natural, como um organismo. Essa tentativa me levou a violentar a sintaxe e os vocábulos a ponto de o poema se tornar quase ilegível. Admiti o fracasso e considerei que minha aventura de poeta chegara ao fim.
Pretender que o poema seja um corpo vivo é aspiração legítima de todo poeta, desde que essa pretensão não perca de vista a natureza específica da linguagem, porque, além de determinado limite, ela se desintegra. Foi o que fiz na experiência, mas ao fazê-lo, o que se desintegrou não foi a linguagem de todos, foi a minha, a de uma poesia comprometida com uma visão de mundo que viria a rejeitar, em função mesmo dessa experiência. Assim, o fracasso foi ao mesmo tempo uma vitória, porque me abriu as portas para novas e radicais indagações; à visão individualista, que me conduziria ao niilismo, substituiu-se a visão social e o reencontro com a realidade objetiva, o mundo de todos.
Devo dizer que a ligação com o real foi sempre uma necessidade em minha poesia. Se, em determinado período, essa ligação ameaçou romper-se, isso se deveu à tentativa de apreender o real em termos supostamente essenciais, e a ameaça de perdê-lo se expressou como um dilaceramento.
O reencontro com a realidade colocaria novos e complexos problemas, que obrigariam a rever os conceitos e preconceitos que acumulara até aquele altura da vida. E o mais grave é que, para que a poesia fosse outra vez possível, não bastava reordenar o mundo segundo uma nova visão filosófica: era preciso vivê-lo segunda essa visão; tê-la entranhada na carne, nos ossos, nas glândulas. Era, em sua, necessário aprender de novo a viver e escrever; errar de uma nova maneira.
Tornou-se então um desafio para mim elaborar uma linguagem poética que expressasse a complexidade do real sem, no entanto, mergulhá-lo na atemporalidade, na a-historicidade, na velha visão metafísica. Noutras palavras: uma poesia que revelasse a universalidade latente no nosso dia, no nosso dia-a-dia, na nossa vida de marginais da história, como outros poetas em seu próprio momento e à sua maneira já o tinham feito. Uma poesia que fosse por isso - e em função da própria matéria com que trabalha - brasileira, latino-americana. Uma poesia que nos ajudasse a nos assumirmos a nós mesmos.
Ligações a esta post:
Em novembro de 2008 o blogue Letras in.verso e re.verso publicou uma post sobre o escritor, aqui.
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