Cal, de José Luís Peixoto
Por José Luís Foureaux
Cal, de acordo com o Dicionário Houaiss, é um
substantivo feminino: pó branco constituído principalmente de óxido ou
hidróxido de cálcio, usado na construção civil, em fluidos de perfuração, em
cerâmicas, na clarificação de óleos, em tintas, revestimento contra fogo,
tratamento de água, na manufatura de papel, como adstringente, etc. Qualquer
produto (pulverulento, pastoso etc.) resultante da hidratação da cal virgem.
Etimologicamente, a palavra vem do latim vulgar – cals (derivado do
acusativo) que, por sua vez, vem do latim calx, calcis – cal, pedra
de cal, com origem no grego kháliks; provindo pelo espanhol cal. A
viagem é longa. De tudo fica um pouco: logo, pode-se acreditar quando dizem que
“cal queima”!
A ideia de fim, de morte, de consumição, não passa ao largo
quando se pensa nessa palavra. Pensar na palavra, pensar com a palavra. Isso é
poesia! É isso o que faz José Luis Peixoto em seu livro Cal. Título
sugestivo, sui generis, instigante e inesperado, dado que trata, em sua
maior parte, da velhice, aquele período em que tudo parece se acabar, queimar
no próprio calor da vida que vai se extinguindo lentamente. Inexorável destino
da humanidade! São 17 contos, três poemas e uma peça teatral sobre a velhice.
Velhice. Alguma coisa que assusta e instiga, alguma coisa que faz com que muita
gente sinta medo; alguma coisa que não agrada a muita gente. Alguma coisa de
inevitável!
A imagem da capa, na edição que li, funde duas fotografias:
a mão engelhada de uma pessoa velha e uma parede caiada. Como se a pele daquela
mão tivesse a mesma natureza da superfície rugosa daquela parede. Corpo e casa
à mercê do tempo, como sinais de uma memória que é sempre o ponto de partida
para os textos de José Luís Peixoto. Sejam eles contos, poemas, crônicas
ficcionalizadas ou peças de teatro.
Cal, editado pela Bertrand é o sexto
livro de prosa de Peixoto. O tema comum: a velhice é lida naquilo que tem de belo,
de melancólico, de exaltante ou de trágico. No fundo, o autor juntou textos
dispersos que só fazia sentido recuperar pelo fato de serem atravessados por
unidade temática forte, determinante. O autor sempre escreveu bastante sobre a
velhice (há velhos em todos os seus textos), porque é “uma idade muito
importante e muito subvalorizada”. O seu interesse literário não se centra na
velhice em si mesma, com a sua sabedoria, os seus sobressaltos e rituais, “mas
mais na passagem entre as várias idades e a forma como se lida com isso.”
Em Cal,
à semelhança dos outros livros, os velhos vivem quase sempre num meio rural que
José Luís conhece bem, porque viveu até ao fim da adolescência na aldeia de
Galveias (concelho de Ponte de Sor). As figuras curvadas que trabalham no
campo, fenecem ao desalento da escuridão das casas, vendem uma burra aos
ciganos como quem vai para o cadafalso, ou acreditam que a sua horta de sempre
cresce no espaço limpo e puro de uma enfermaria hospitalar (ainda que nem
sempre, infelizmente, seja assim!). Tudo é, muitas vezes colagem exata de
pessoas que o autor conheceu, ou de quem ouviu falar.
Há mesmo nomes reais que
assomam às páginas, dando uma dimensão humana fortíssima às histórias, várias
delas com um assumido cunho autobiográfico: “De certo modo, quis preservar, através
da escrita ficcional, a dignidade das pessoas que me fizeram ter consciência de
que a velhice não é só uma questão de decadência física. Às vezes é também o
exacto contrário disso.”, diz o autor! Há razões mais subterrâneas que levaram
Peixoto a escolher o título: Cal. “Não foi só a identificação com o
Alentejo, não foi só a brancura, não foi só a ideia de uma espécie de
cristalização das casas, que as conserva e as paralisa no tempo. Foi também a
noção de que a cal é uma matéria perigosa, uma pedra que ao colocar-se dentro
de água ferve, queima e se cai nos olhos cega.” Metáfora perfeita, também, do
que é a escrita.
Eduardo Prado Coelho diz que “a grande força de José Luís
Peixoto está no modo como narra histórias que se dobram para dentro da sua própria
loucura e no fio puríssimo de luz com que as vai reunindo e salvando do
esquecimento”. Palavras de sabedoria. O texto de José Luis não desmente a
acuidade do olhar do crítico. Como fio puríssimo de luz, uma ausência presente
atravessa os gestos e as emoções destas figuras.
Em cumplicidade com a morte, a
vida torna-se mais límpida, talvez mais pura. A luz – força redentora de suas
personagens –, é certamente um dos fios condutores do texto. Quem gosta da
escrita deste autor português, irá certamente reencontrar palavras e frases ao
estilo daquelas que podem ser a razão de se gostar do estilo de escrita de José
Luís Peixoto, um estilo bastante característico e que desperta no leitor
determinados sentimentos que fazem pensar e reviver memórias ou detalhes esquecidos
ou que estão adormecidos.
Para quem não conhece, fica a recomendação, com a
condição de aconselhar apenas às pessoas que queiram ler algo que lhes faça
refletir ou que estejam à procura de algo calmo, estejam à procura de encontrar
pessoas simples e com elas reviver determinados momentos das suas vidas,
momentos distintos, acontecimentos distintos, personagens semelhantes, mas
distintas. Poesia, para dizer tudo numa única palavra.
* Este texto foi publicado inicialmente no blog de José Luis Foureaux.
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