Visitas ao universo literário de Pepetela

Pepetela. Foto: Beto Figueiroa



A obra de Pepetela é, do seu país, certamente uma das obras melhor consolidada e mais significativa. A afirmativa tem a ver com a quantidade significativa de livros publicados e mais que isso, a qualidade inconteste referendada pela crítica literária em vários cantos da língua portuguesa. Depois de José Craveirinha, o escritor angolano foi o segundo a receber o prestigiado Prêmio Camões, em 1997. Nesse período, sua obra começa a ganhar novos contornos: permanece o interesse original pela história de Angola, mas agora se volta para discutir questões sobre uma sociedade pós-colonial maculada pela variedade de problemas decorrentes dos tempos que esteve sob jugo do colonizador.
 
Pepetela nasceu a 29 de outubro de 1941, em Benguela. É descendente de uma família de portugueses que migraram para África nos idos anos quando muitos buscaram nas colônias um meio de sustento. Fez os primeiros estudos ainda na cidade natal; depois, no ensino secundário foi para Lubango. Esses pequenos êxodos pela educação levam-no até Lisboa, onde passa a frequentar, a partir de 1958, o curso de Engenharia, formação que será substituída dois anos mais tarde pelo curso de Letras na Universidade de Lisboa. É por essa época que se junta ao Movimento Popular de Libertação de Angola.
 
A vivência como militante obriga-o a sair de Portugal. Exila-se em Paris e depois em Argel, onde passa a trabalhar no Centro de Estudos Angolanos, condição que o permitiu divulgar o trabalho de propaganda do MPLA no exterior. Foi quando também escreveu o livro que seu primeiro romance Muana Puó, obra que examina a situação de Angola através da metáfora das máscaras Côkwes; o livro permaneceu inédito e não o foi com ele que fez sua estreia na literatura. Esta se deu com a publicação, em 1972, de As aventuras de Ngunga. De toda maneira, quando já ocupava uma função no governo de seu país, aquele livro de Argel tomou forma. Era 1978.
 
Na década seguinte, depois de publicar vários romances, passa a se dedicar com interesse na carreira de escritor, exercício que se torna ofício tão logo deixa suas funções no governo, no fim de 1982. É desse período alguns dos títulos mais significativos com Lueji (1990), A geração da utopia (1992), Predadores (2005) e O quase fim do mundo (2008). Sua obra, nota-se, privilegia a forma romanesca, mas tem incursões pelo teatro, em duas peças que tematizam algumas das situações já oferecidas na expressão literária pela qual ficou reconhecido; são elas: A corda (1978) e A revolta da casa dos ídolos (1980).
 
No Brasil, foi pela Editora Ática, interessada em oferecer uma visão sobre as literaturas praticadas na África de língua portuguesa, que Pepetela chegou. O seu romance de estreia, escrito para um público de universitários discorre a partir do crescimento do protagonista, o revolucionário do MPLA Ngunga, sobre cultura e o imaginário de Angola. Este romance registra bem toda potência encantatória que o jovem escritor nutriu pelo nascimento da nação, incluindo o produto de suas experiências de quando esteve à frente, entre os angolanos, na luta contra os colonizadores portugueses. Nesse período de guerrilheiro, além do segundo romance, Pepetela escreveu também Mayombe, livro que é publicado em 1979.
 
Outro livro que apresentou o escritor angolano aos leitores brasileiros foi Yaka. O romance segue o mesmo esquema criativo dos romances anteriores – uma narrativa preocupada em oferecer uma visão acerca da tradição de seu país; aqui, a máscara é substituída pela escultura de madeira utilizada pelos yakas na prossecução da guerra, denotando uma leitura acerca dos valores e do espírito de nação.
 
Em 2005, a Editora Nova Fronteira publicou A gloriosa família, um romance de 1997 que conta a história da família Van Dum, formada por Baltazar, um holandês, sua esposa africana e vários filhos, durante a ocupação holandesa de Angola no século XVII. Dois antes, outra casa editorial se interessa por publicar Jaime Bunda. Agente secreto. O livro sai logo por aqui, dois anos depois de sua primeira aparição, e a explicação é lógica: com os desarranjos no seu país, Pepetela passa mais tempo aqui no Brasil e em Portugal, distanciamentos que o leva além da literatura a desistir da vida política para ser professor na Faculdade de Arquitetura, em Luanda.
 
O romance Jaime Bunda assinala a guinada satírica em relação à história do seu país. A personagem-título é um detetive vacilão que remete, em modo de paródia, ao James Bond; fissurado pela série de filmes dessa personagem e por romances policiais estadunidenses, o filho de duas famílias mais proeminentes de seu país, inaugura novas feições, contrárias ao estabelecido modelo revolucionário. Pepetela escreveu uma continuação do primeiro livro; neste, o detetive investiga um assassinato e estupro que o levam a um falsário chamado Karl Botha. Já em Jaime Bunda e a morte do americano, publicado em 2003, o registro recai especificamente sobre as influências que os modos culturais estadunidenses afetam a Angola, sobretudo a maneira inusual da atuação da polícia neste país, marcada pela maneira com nos Estados Unidos se lidam com o terrorismo.
 
Para José Carlos Venâncio, a obra de Pepetela se distingue especificamente em duas dimensões: uma introspectiva e outra extrospectiva. “A primeira, assentando-se numa procura identitária, começou por condicionar, em termos temáticos, a primeira obra de fôlego do autor.” Citando o próprio escritor, esclarece-se que nesta ocasião a escrita “obedece a uma espécie de programa, um programa mínimo de tudo o resto”. Aqui estão situações romances como Muana Puó, Lueji e Yaka. “A dimensão introspectiva é, sobretudo, evidente nos romances escritos durante a vigência do regime de partido único, em que o seu esforço de escrita se confundia num plano subjectivo, com a procura de uma pátria (...) e, em termos mais objectivos, com a instalação do socialismo e, por via dele, com a construção da nação angolana. Esta é pensada como uma utopia, como um espaço de igualdade, onde os conflitos raciais e étnicos, desde que a distribuição da riqueza fosse equitativa, seriam, se não existentes, pelo menos fortemente esbatidos.”
 
É a partir de A geração da utopia que, segundo o autor, assinala o porto de passagem para a dimensão extrospectiva, visto que nele se descreve todo espírito de desilusão com  o projeto nacional no seu início. O que Venâncio constata é que os romances a partir de Mayombe passam a se interessar pelos impasses históricos e pré-históricos de Angola e alguns carregam um profundo sentido pedagógico.
 
“Romances como O desejo da Kianda (1995), Jaime Bunda. Agente secreto (2001), Jaime Bunda e a morte do americano (2003) e, sobretudo, Predadores (2005), textos que consubstanciam, a par de outros, o que denominei de dimensão extrospectiva, são sobretudo significativos pela crítica que tecem ao curso político que a Angola ‘pós-utópica’ tem encetado. E, desta feita, o poder político e as elites políticas não são poupadas na sua responsabilidade. Nem o Presidente da República, que durante anos governou o país a partir da sua residência no Futungo de Belas, está livre dessa crítica.” Segundo o autor, estes textos já não se preocupam “com a necessidade de construir uma nação ou pátria angola ou, ainda, com a necessidade de motivar e educar os seus conterrâneos nesse sentido, mas sim com a preocupação de mostrar que há alternativas à linha de desenvolvimento económico e social entretanto adoptada.”
 
Quer dizer, toda a obra de Pepetela é um excelente observatório sobre o encanto e desencanto com o coletivo e com a revolução, pelos menos nos moldes então estabelecidos, como salvaguarda para uma restauração da ordem universal dos homens.

 
Nota:
* O texto referido aqui, de José Carlos Venâncio, é “Nacionalismo e pós-nacionalismo na literatura angolana. O itinerário pepeteliano” e foi publicado em Comunidades imaginadas. Nação e nacionalismos em África, obra organizada por Luís Reis Torgal, Fernando Tavares Pimenta e Julião Soares Sousa, publicado pela Imprensa Universidade de Coimbra em 2008.

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