O realismo irónico
Por Miguel Real
Praticando um
culto estilista da língua e sendo, com Mário Cláudio, um dos escritores vivos
com mais amplo domínio de registo vocabular, seja clássico, seja moderno, Mário
de Carvalho é possuidor de um vastíssimo leque de artifícios literários pelos
quais encanta o leitor. Entre o anedotário, a paródia, a exploração surrealista
da imaginação (A inaudita guerra da
Avenida Gago Coutinho, 1983; “Três personagens transviadas” e “Fenômenos da
aviação”, in Contos vagabundos, 2001),
o pastiche, o conto pícaro, a graça jocosa, a apologia e a parábola moralistas,
mantém sempre uma admirável qualidade de escrita.
Foi, porém,
nas diversas modalidades do conto e do romance histórico (Um deus passeando pela brisa da tarde, 1994) que Mário de Carvalho sobressaiu
com uma impressionante mestria, seja enquanto criador de uma obra-prima do
pícaro moderno (Quatrocentos mil
sestércios, 1991), seja enquanto cultor do conto histórico-romântico (Conde Jano, 1991), nos quais, em termos
de construção narrativa, de precisão vocabular e de referencial semântico,
atinge a qualidade da narrativa picaresca de Eça (A relíquia, segunda a interpretação de Guerra da cal) ou das
histórias de Lendas e narrativas, de
Alexandre Herculano. No campo do romance de costumes, como modo de interpretação
das grandes questões políticas e sociais do nosso tempo, Mário de Carvalho
utiliza com profusão o realismo crítico e irônico, de que Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto (1995) e Fantasia para dois coronéis e uma piscina
(2003) se constituem como paradigmas.
É justamente
neste campo que acaba de ser publicado A
arte de morrer longe, conto longo ou novela ou, ainda, “cronovelema”, na designação
especiosa do autor. É o seu modo de intervir na cidade, contestando a embriaguez
alucinante e alienante da pobreza de ideias e da obsessão económica hoje
dominantes em Portugal, governado por políticos janotas e videirinhos,
endeusadores do mercado como os sacerdotes católicos da Divina Trindade.
Nesta sua
nova história, o estilo permanece o mesmo: tanto marcado pelo horizonte do
realismo clássico, girando em torno de apontamentos descritivos, por vezes
pormenorizadamente expositivos, como no palco ou no ecrã, quanto pela pulsão
desconstrucionista de subversão da própria história narrada, gerando uma
escrita singular onde se reconhece, simultaneamente, os traços vernaculares de
filigrana da sintaxe de frase longa de Aquilino Ribeiro e a explosão imaginativa
de Nuno Bragança. Escritor singularíssimo, cujo estilo de imediato se reconhece
entre os textos mais díspares, inclusive o teatral, Mário de Carvalho harmoniza
com muita perfeição a citação intelectual, fundada na memória da História, e o
verve popular, a irrupção maliciosa, a canalhice entre vizinhos ou colegas, a
humilhação arrogante do inferior pelo superior e o servilismo despercebido mas
matreiro deste face àquele. Longe da gravidade de Lídia Jorge, do epicismo de
João de Melo ou do tragidismo de Héla Correia, autores que igualmente irromperam
na Literatura na década de 80, é em Mário de Carvalho, indubitavelmente, em
conjunto com Rui Zink, que hoje mais se faz sentir a tradição portuguesa do
realismo irônico de Eça de Queirós, isto é, uma visão crítica impiedosa,
sanguínea e humorada do estado de Portugal.
Polícias
(Gervásio Escarrapacha) dando o golpe do baú em donas de casa serôdias,
quebrando a solidão de antigo divórcio (mãe de Arnaldo), donos de lojas de
ferragens (o Sr. Ferragial), assaltantes brasileiros, tios geniais mas
mentalmente insanos (o tio Valentim), empregaditas de comércio à volta com as soluções
informáticas do “Excel” (Clarinda), filhos ricos (Coriolano) e caixeiros
pobres, empregados de escritório recalcados nos seus sonhos, vivendo para “chatear”
os outros (Quintão Malpique), burocratas iludidos, fruindo o gozo de mais
papelada (Cintialina), problemas de casamento e divórcio (Arnaldo e Bárbara, as
personagens principais), pudores ecológicos (a morte da tartaruga) – o que
perfez o bulício vivo de um bairro lisboeta de classe média em desespero de finanças
e de prestígio, eis a atmosfera social de A
arte de morrer longe, captando com fidedignidade (o registo realista) o dia a dia do lisboeta, mas
também com uma soberba imaginação crítica (o resgisto irónico).
Se tivéssemos
de sintetizar A arte de morrer longe
em três frases, não hesitaríamos em considerá-la (à novela) sustentada de (1) humor na narração, (2) realismo na descrição e (3) ternura no desenho das personagens – as três
colunas que estilisticamente amparam a ironia realista presente neste texto,
composto simultaneamente de um olhar irónico
na visão da realidade do quotidiano e de uma perspectiva crítica quanto ao sentido social deste.
Neste sentido,
A arte de morrer longe evidencia-se
como um livro voluntariamente disperso, fragmentário, composto por inúmeras
histórias ou divagações culturais e sociais do narrador, motivadas pela descrição
do círculo social das personagens, por recordações, por curtas estórias,
unificadas no seu todo pelo desentendimento superficial de um casal de cerca de
trinta anos, à beira do divórcio e do destino a dar à tartaruga caseira, que
ambos recusam levar consigo. No seu desta estrutura geral, unificada pelo
espaço lisboeta da narrativa, entre o Lumiar, Alvalade e o bairro de São Paulo,
sucedem-se outras histórias, nascidas dos círculos sociais de Álvaro e Bárbara.
Deste modo, o todo da narrativa faz coexistir dois tipos de textos: o da
intriga central, a preparação do divórcio entre Álvaro e Bárbara, e o das reflexões,
impressões e opiniões do narrador relativas à actualidade social.
Se, no
primeiro, o realismo atinge uma vivacidade inaudita, fundado em inúmeras peripécias,
é no segundo que o horizonte irónico e crítico mais se estende, evidenciando a
nossa sociedade esquizofrênica e excessiva, que a novela desmonta e desmascara
humanizando-a.
* Texto
publicado inicialmente no Jornal de
Letras, 21 de abril-4 de maio de 2010, p.13
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