Lápis nas veias, de Clauder Arcanjo
Os atropelos do tempo não me permitiram ainda que eu chegasse ao fim das mais de 197 páginas desse livro de Clauder Arcanjo, o segundo da safra de escritor; o primeiro foi Licânia. Entretanto, é um título que já me inquieta a escrever sobre e diria que desde quando o tive em mãos.
Publicado pela Sarau das Letras, mesma editora que pôs a lume Incerto caminhar, de David Leite, Lápis nas veias atende a essa minha falta de tempo. É um livro breve com textos breves. Isto é, pequeno nas dimensões e na extensão dos textos, na extensão do volume (assemelhado a um livro daqueles de bolso). Mas como roga a epígrafe recortada de um ditado popular: "Tamanho não é documento".
E ele próprio se faz grandioso, sobretudo porque une uma beleza estética fabulosa: o imagético à palavra. Para cada texto uma fotografia do premiado Pacífico de Medeiros. Verbo e imagem costuram-se constroem uma sinfonia perfeita entre a palavra e a fotografia. É, portanto, um livro para nos momentos de indisposição pela leitura, deixar-se extasiar pelo movimento preto e branco da imagem.
Já quanto aos primeiros gravetos verbais que pude apreciar desse feixe de minicontos, noto a marca de uma dissonância no tom, comum, mas uma dissonância perfeita - que arrumada traduz singelezas ao livro. Julgo que, o que mais me agrada nos textos de Clauder neste Lápis nas veias, reside na densidade com que o signo linguístico é emprenhado já desde seu título e em alguns desses minicontos. Chamo atenção nesse caso para "A terra da omissão", "Aborto", "Argumento" e "Arrombado".
Outro fator que me agrada tem a ver com esse caráter de dissonância que começa a nascer na própria materialidade do texto, marcada, ora por uma imprecisão do gênero (conto-causo, conto-poesia, conto-conto), ora por uma imprecisão da coordenação das cenas, neste caso, certamente, causa da brevidade com que são tecidas as narrativas. De modo que, é este um livro singular para a prosa contemporânea do Estado. Afirmo colocando em jogo toda minha pouca experiência com a crítica literária; mas é que, desconheço, contemporaneamente, no Rio Grande do Norte, alguém que se beneficie tão bem da brevidade do texto.
Dos títulos que citei, recorto um como aperitivo para o leitor; não vem acompanhado pela fotografia de Pacífico porque não escanear o material não ficaria bem. O texto está abaixo:
Arrombado
Terras distantes, nos fundões. Riacho na frente da casa, poucas águas. Tímido, esquálido naquela terra de gente calada e crente em Deus. Manoel, Maria e a filha Vera.
Manoel, marcado pelo costume: roça e pinga. Maria, marcada pelo costume: chapéu de palha e reza. Vera, sem costume, com jeito de moça, marca dos peitos a furar o vestido de chita, pernas grossas, bunda empinada, cabelos negros, jeito perdido de azul profundo.
Uma noite de chuva, muita chuva. A enxurrada e os raios no céu, como nunca antes.
O estrondo e as preces. Riacho em plena enchente. Nas preces de Manoel, a proteção contra o arrombado - fim das colheitas. Nas de Maria, a proteção das palhas de carnaúba. Nas de Vera, um arrombado forte, muito forte, para limpeza e arraste de tudo.
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