Uma iconografia de Machado de Assis
Por Pedro
Fernandes
Vários nomes
da nossa literatura reuniram a condição de, mais tarde, oferecer aos
pesquisadores o a possibilidade de ter suas vidas reconstruídas por um itinerário
feito de fotografias. Penso aqui na magistral coleção realizada pelas Edições
Alumbramento que reuniu fotobiografias de gente como Carlos Drummond de Andrade,
Manuel Bandeira, Jorge Amado, e Mário de Andrade. São livros realizados para um
tempo em que a imagem se constituiu registro de memória e culto. Agora, que a
foto beira à banalização pelas possibilidades digitais oferecidas, receio que
se prevalecer o critério memorial ainda valha alguma coisa.
Agora, se
repararmos nos nomes que compõem a coleção referida acima, notaremos uma coisa,
além da figura de culto. São figuras que pertencem a uma geração de consolidação
dos registros fotográficos para além do estúdio; integram parte da democratização
da imagem, esta que deixa de ser captar o retrato para adquirir
movimento ou captar o instantâneo. As suas condições são privilegiadas ainda
por pertencerem a um núcleo intelectual nos principais centros do Brasil. Mas,
e nos casos em que tudo não é favorável ao registro fotográfico?
Machado de
Assis, sobre quem o Instituto Moreira Salles acaba de publicar um livro reunindo
imagens do escritor, pertence à geração de nascimento das primeiras técnicas fotográficas;
ele e o daguerreótipo são de 1839. Figura de culto parece que o nosso Bruxo do
Cosme Velho já era desde quando morreu, mas antes de alcançar essa posição, era
o homem de periferia, pobre, que precisava ser criativo nos afazeres para
galgar um trabalho e prover o sustento. Pelas limitações, imagina-se que a fotografia
era no seu tempo um luxo dos mais caros, ainda que logo tenha se difundido no
Brasil. A partir dos anos 1860 a atividade de fotógrafo ganhou impulso por aqui.
Estima-se cerca de três dezenas de profissionais do tipo.
O que o
livro organizado por Hélio de Seixas Guimarães e Vladimir Sacchetta vem nos dizer
sobre o autor de Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas,
marcos fundadores de nossa literatura, é que o escritor se movia à golpe de sorte
e certamente porque demonstrava duas coisas que transbordava de sua
personalidade sagaz: o talento e o domínio da palavra. No tempo de Machado de
Assis, essas características abriam portas a quem não era permitido entrar. Penso
que toda a ascensão do franzino jovem da periferia do Rio de Janeiro foi
produto exclusivo seu e das oportunidades, talvez raras mas agarradas com a
seriedade devida, que lhe apareceu. Este homem é o legítimo brasileiro, feito pelas
margens até se encontrar, de fato e de direito, no salon.
Pois bem, já
aos vinte e poucos anos, quando é aprendiz de poeta e dramaturgo, ajudante de
tipografia, Machado de Assis consegue realizar seus primeiros registros
fotográficos. Os três retratos enviados ao amigo português António Moutinho de Sousa,
mostram o jovem ora de rala barba, ora de ralo bigode e a usar um pincenê que
se tornaria sua marca noutras aparições. Nesta última fotografia, que bem parece
a primeira do conjunto, uma vez que o fotografado de rala barba, outra coisa
chama atenção: a pose copiando os registros franceses da época, um Victor Hugo,
um Balzac ou um Baudelaire repetem o clássico gesto da mão sobre o peito como
se numa demonstração de afeto, ou ato de fé. Este retrato simula a repetição que
se fará ao longo de sua vida até a constituição final de sua efígie.
Junto com
esses três retratos, os organizadores de A olhos vistos: uma iconografia de
Machado de Assis conseguiram catalogar outras 21 imagens. É tudo o que se
tem sobre o escritor até agora. Grande parte dos registros estão de acordo com
o chamam de “a moda da segunda metade do século XIX”: “a carte de visite,
fotografia copiada sobre papel albuminado e colada sobre um suporte de papel
mais grosso, de aproximadamente 10,5 x 6,3cm, algo entre um cartão de visita e
um cartão-postal.”
Grande parte desses retratos foram realizados no mestre mais importante da capital do Império: Joaquim Insley Pacheco. Aqui, parece residir algo que justifica a
minha suspeita levantada acima. Se não os mais antigos, mas os primeiros
registros, quando o jovem certamente não dispõe do dinheiro para custeá-los,
parecem produtos de uma troca comercial, mais que um presente de amigo, como sugere
os organizadores da iconografia do escritor. No texto “A composição de uma
figura: anotações sobre as fotografias de Machado de Assis”, Hélio de Seixas
Guimarães registra uma crônica de Machado de Assis publicada no Diário do Rio
de Janeiro em 7 de agosto de 1864 em que o escritor se dedica “quase inteiramente
à casa de Insley Pacheco e às maravilhas da fotografia”. E é do mesmo ano (ou
pelo menos se atribui a 1864) outras duas fotografias que mostra o magro
rapagão sentado, também à maneira dos registros de outros escritores, à
escrivaninha.
O escritor foi
ainda contemporâneo às primeiras popularizações do instantâneo. Há dois registros
no livro que atestam isso: “o flagrante da síncope de Machado no Cais Pharoux,
registrado por Augusto Malta em 1907, e também a cena de uma mesa de café [fotos aqui], em
que ele aparece numa composição não posada, ao lado de Walfrido Ribeiro e Euclides
da Cunha.” Essas imagens atestam ainda o lugar de importância que o escritor passava
a ocupar nos últimos anos de sua vida; o flagrante nada mais é do que, no tempo
da reprodução veloz de imagens, o nosso paparazzi que, pagos ou por conta
própria, atuam seguindo os famosos aonde vão ou onde se escondem.
Mas, como organizar
uma fotobiografia com 24 fotografias? Sem nenhum registro dos familiares, das
origens e dos anos que trouxeram até nós o rapaz de vinte e poucos anos? Por
isso a escolha dos organizadores pelo termo iconografia. No livro, eles
reúnem além dos retratos e dos instantâneos uma variedade de materiais: são
caricaturas, desenhos e alegorias que tomam como referência Machado de Assis e
sua obra; a coleção de retratos da sua esposa, Carolina, com quem foi casado
toda a vida e documentos pessoais, como manuscritos, autógrafos, cartões postais
enviados e recebidos e uma variedade de registros do Rio de Janeiro de seu
tempo; estes em diálogo com passagens variadas da obra oferecem ao leitor uma
visita à vida não do homem mas do escritor. Isto é, do homem que se fez através
do seu ofício. Tudo isso atesta para um Machado cioso de sua própria imagem e
interessado em preservar apenas a identidade pública, não a particular.
A olhos
vistos é um doce álbum que visita sobre a figura pública do escritor mas constrói
um mundo que os seus leitores do nosso tempo talvez não vislumbrasse no contato
verbal. O visual, nesse sentido, acrescenta, ilumina e enriquece um universo incapaz
de ser recuperado em sua integridade, não só porque foi o olhar do escritor
inovador e perspicaz, mas porque os registros de imagem chegados até nós são raros.
O resto deve ser preenchido com a nossa imaginação, a mesma que como leitor
utilizamos para materializar os universos ficcionais fabulados por Machado de
Assis.
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