Milan Kundera
O nome de
Milan Kundera não mais estranho ao leitor brasileiro. Sua obra tem livre
circulação no país e a permanência da adaptação cinematográfica de A insustentável leveza do ser pelo cineasta
Philip Kaufman no centro das obras do chamado círculo Cult, são elementos que
justificam essa afirmativa. Além disso, o nome do escritor está em todas as
listas de aposta para o Prêmio Nobel de Literatura, inscrevendo-o no rol dos nobelizáveis quais foram da nossa cena
João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado ou Guimarães
Rosa. O que isso significa? Significa que, venha o prêmio ou não, Kundera é já
um dos expoentes da literatura universal. Afinal, não foi o fato dos
brasileiros citados ou qualquer outro escritor que mereça a honraria algo que
os destitua do lugar alcançado por sua obra.
Milan
Kundera é o típico escritor nascido e criado numa cultura erudita e faz dela
uso na composição de uma simples na forma e profunda no conteúdo evocado. O pai
Ludvik Kundera foi aluno do compositor Leoš Janáček, um importante nome da
música. Esse contato com a música (Kundera aprendeu piano com o pai) deu os
contornos para a composição literária conforme relembra na entrevista Christina
Salmon (reunida em A arte do romance),
quando trata do seu apego ao ritmo da polifonia para a feitura do romanesco:
“A polifonia
musical é o desenvolvimento simultâneo de
duas ou mais vozes (linhas melódicas) que, embora perfeitamente ligadas,
guardam sua relativa independência. A polifonia romanesca? Digamos de início o
que lhe o oposto: a composição unilinear.
Ora, desde o início de sua história, o romance tenta escapar da unilinearidade e
abrir brechas na narração contínua de uma história. Cervantes conta a viagem linear
de Dom Quixote. Mas enquanto viaja, Dom Quixote encontra outros personagens que
contam suas próprias histórias. [...] Ora, para mim, as condições sine qua non do contraponto romanesco
são: 1. a igualdade das respectivas ‘linhas’; 2. a indivisibilidade do conjunto.
Lembro-me do dia em que terminei a terceira parte de O livro riso e do esquecimento, intitulada ‘Os anjos’. Confesso que
estava terrivelmente orgulhoso, persuadido de ter descoberto uma nova maneira
de construir uma narrativa. Esse texto é composto dos seguintes elementos: 1. a
anedota sobre dois estudantes e sua levitação; 2. a narrativa autobiográfica;
3. o ensaio crítico sobre um livro feminista; 4. a fábula sobre o anjo e o
diabo; 5. a narrativa sobre Éluard, que voa acima de Praga. Esses elementos não
podem existir um sem o outro, eles se esclarecem e se explicam mutuamente,
examinando um só tema, uma só questão: ‘o que é um anjo?’ Somente essa questão os
une. A sexta parte, também intitulada ‘Os anjos’, é composta: 1. da narrativa onírica
sobre a morte de Tamina; 2. da narrativa autobiográfica da morte de meu pai; 3.
de reflexões musicológicas; 4. de reflexões sobre o esquecimento que assola
Praga. Qual é a ligação entre meu pai e Tamina torturada por crianças? É, para
evocar a frase cara aos surrealistas, ‘o encontro de uma máquina de costura com
um guarda-chuva’ na lista do mesmo tema. A polifonia romanesca é muito mais poesia
que técnica”.
A formação secundária
de Kundera foi em Brno; depois estudou literatura e estética na Faculdade de
Artes da Universidade de Charles – curso que não chegou a concluir porque
transferiu-se para cinema, outra de sua paixão, na Academia de Artes onde
realizou a produção de alguns scripts e
direção de algumas peças cinematográficas.
Durante o período
na faculdade, envolveu-se com o debate político em seu país; esse envolvimento
levou a interromper novamente os estudos; era 1950 e logo depois, Kundera foi
expulso do Partido Comunista Theco acusado de atividades anti-partidárias. Esse
episódio seria uma trama para a construção de um entrelugar do escritor? É caso
a ser investigado. Mas, o amigo Jan Trefulka, usou o incidente do qual também participou
em uma de suas novelas e Kundera trouxe o acontecimento como inspiração para o
tema principal de seu romance A brincadeira
(1967). Seis anos mais tarde, os dois foram readmitidos ao Partido Comunista;
Kundera foi de novo expulso na década de 1970, depois de participar ativamente
dos episódios históricos da Primavera de Praga, no fim da década de 1960.
A invasão da
União Soviética pouco tempo depois de sua expulsão do Partido, levou a organização
de outros movimentos de resistência ao domínio comunista, tema usado com alguma
recorrência nos seus livros. Nesse intervalo Kundera ainda resistiu sob o
regime por sete anos, quando foi convidado para um curso na Universidade de
Rennes na França, onde vive desde então.
Uma série de
mal-entendidos escondem-se neste episódio. A estadia que seria de três anos em
Paris tornou-se residência própria; o escritor deixou de escrever no seu idioma
para escrever em francês e isolou-se num longo silêncio e tem-se mantido sempre
recluso sobre os temas ligados àquela década. Em 2008, veio a lume a denúncia
de grupo de seu país que apresentava provas de o escritor nunca teria cortado
em definitivo os laços com o Partido Comunista e foi, durante a ocupação, um informante
secreto do seu país para o regime. O esquema teria levado a condenação de pelo
menos uma pessoa que, libertada da pena de morte, teria cumprido 14 anos de
trabalhos forçados numa mina de urânio. Kundera desmentiu o caso que na matéria
apresentada pelo jornal Respeket que lembra
o fato do escritor não conhecer Dvorácek (o condenado) mas fez acusações a
partir de suposições pela ligação com o amigo Miroslav Dlask; Dovoráck morreu acreditando
que a denúncia teria sido produzida pela amiga Iva Militka, então namorada de
Dlask.
Conspirações
à parte, foi na França onde escritor elaborou os títulos que lhe valeram reconhecimento
fora de seu território de adoção; dos prêmios colhidos desde então, está o Prêmio
Jerusalém, um dos mais importantes galardões antes do Nobel.
Mas, antes
dos romances, Kundera deu preferência à poesia. Tinha 24 anos quando publicou o
primeiro de três livros do gênero com forte influência socialista pela
convivência com os escritos de nomes como de Konstantin Biebl, mesmo que no
primeiro romance, publicado daí alguns anos, já dedicasse uma releitura do
totalitarismo comunista. Essa incursão terá lhe valido a censura à sua obra em
seu país natal depois da ocupação soviética.
Somente em
1992, quase trinta anos depois, é que sua obra voltou a ser publicada na Tchecoslováquia
e dividiu opinião entre os leitores; isso depois de um longo processo permitiu
que o escritor e outros intelectuais tivessem a liberdade de fazer circular sua
produção artística pelo país. Nesse retorno, o escritor proibiu a publicação da
obra poética da juventude porque diz sê-la ingênua e não construída por
verdadeira convicção literária.
O livro do riso e do esquecimento foi seu
primeiro romance escrito em território francês e é, talvez, aquele que, como lembra
o próprio autor, descobriu seu próprio estilo: uma mistura inusitada de
romance, conto, ensaio e memória autobiográfica. Esse tom ganhará sempre novas
revisões nas obras seguintes, inclusive seu romance mais popular, A insustentável leveza do ser, livro
lido pela crítica como uma grande crônica sobre a frágil natureza do destino,
do amor e da liberdade humana.
E, no
desenvolvimento de obra romanesca, em nenhuma ocasião, o escritor terá esquecido
o elemento da história como condicionante do narrado. Em A imortalidade, isso está muito claro, no entanto. O enredo
situa-se no âmbito do universo social e político da República Theca e eivado de
um conteúdo filosófico que marcará o que a crítica considera o segundo momento
de sua obra. Apesar da recorrência do
histórico (impossível de se esquivar, disse certa vez) e das críticas ao
totalitarismo comunista, Kundera sempre se reafirmou que não se considera um
dissidente e que o romance dedicado a forjar
uma tese seja para qual lado do poder (comunista ou anticomunista) é uma farsa
da qual não considera fazer parte.
“Não gosto
de reduzir a literatura e a arte a uma leitura política. A palavra dissidente
significa amarrá-la a uma literatura de tese e se detesto alguma coisa é
precisamente a literatura de tese. O que me interessa é o valor estético. Para
mim, a literatura comunista ou a anticomunista é, nesse sentido, a mesma coisa.
Por isso não gosto de ver-me como um dissidente”.
Leitor apaixonado
de Cervantes, Kafka, Broch, Musil, Gombrowicz, esses três últimos lidos por ele
como “possuídos do desejo de questionar o mundo objetivo” e que “consideram o
romance como a forma suprema de conhecimento”; tendência pela qual se sente
muito próximo porque “compreende o romance como uma síntese da filosofia, da
narração, dos sonhos, do jornalismo e da autobiografia”. Outra questão que lhe
chama atenção nesses autores e na narrativa russa é capacidade de se moverem pelo
ideal de revolução da arte de narrar; não como conceber da ideia de progresso,
concorda, sem a revolução.
De revolução
em revolução se compõem a obra de Kundera, sempre um instigante convite à reflexão
sobre questões muito caras à comunidade humana.
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