Literatura e uso

Por Pedro Fernandes


Por causa destas faltas e outras semelhantes é que pomos a inventar histórias de tesouros, ou já as encontramos inventadas, sinal de muita necessidade antiga, não é só de hoje. E há avisos que devem ser entendidos com muita atenção, ao mais pequeno engano desfaz-se o ouro em pez e a prata em fumo ou fica um homem ceguinho, têm-se visto casos.

(José Saramago, Levantado do chão).


Do interior da materialidade de outras reflexões que costurei acerca da Literatura eis que se me apresenta mais esta: Literatura e uso. Chamo-a aqui e acho por bem colocá-la em pauta. É sobre tal relação de que este texto trata.

Há vários sentidos com que empregamos a palavra “uso” e, consequentemente, vários sentidos para a relação aqui proposta. Mas o que eu quero é justamente aquele uso corriqueiro que leva em consideração o sentido de “manipulação” do texto literário; sobretudo do texto literário enquanto matéria de estudo no campo dos estudos da linguagem. Acerca de outros usos, como do texto literário em sala de aula, por exemplo, é inventário para outra reflexão, para outro momento.

No curso deste texto estarão implícitas no explícito críticas a alguns entendimentos correntes, falhos por sinal, de falsa modéstia, que tem se espalhado a torto e a direito pelo senso comum, como aquele famoso “todo mundo pode falar de literatura”.

E tal mentira tem sido verdade. Há um grupo seleto que tem – presos à falsa ideia de interpretação como tudo o que pode ser dito a partir da leitura – tomado a literatura como matéria de fala e feito dela certos usos, que chamaria aqui duvidosos, para não dizer indevidos, que constituem um verdadeiro abuso. Confiantes que são naquelas chamas que noutra época pousaram nos apóstolos, esse tabernáculo com seus devaneios aproveitam da aparente maleabilidade do tecido literário e fazem leituras duras de engolir.

Que o texto literário pode se constituir em matéria de leitura, para não dizer análise – palavra que nutro certo receio de usá-la – é coisa que se faz desde que pela primeira vez o jogaram numa máquina de leitura, ou para ter precisão mais científica, o jogaram numa mesa cirúrgica e tiraram para biópsia todas as suas partes. O problema parece nascer aqui, mas vai mais além. Tem a ver com a noção de aplicabilidade. Isso os do tabernáculo tem sua parcela de culpa. Muitos dos usos duvidosos do texto literário tem se rendido ao estado de um aplicacionismo barato que fere a instância de arte da literatura: a instância da reflexão.

Parece que, de uns tempos para cá, então, temos nos esquecido de que no texto literário o frio desenho da palavra, essa mancha que salta em relevo do branco da malha do papel, é carregado de bocas que dizem sem dizer. Toda escrita literária se constitui enquanto tal por esse caráter; todo estudo para com ela deveria levar em consideração isso. Não quero dizer com isso que a escrita literária seja espaço do devaneio, mas que, toda escrita literária não é espaço de devaneio no sentido de que seu leitor deva, armado com telescópios gigantes, captar o que está escondido sob sua superfície. O que o texto literário diz está lá no próprio texto. Não se trata de fazer autopsias porque é a busca pelo sentido – essa a que mais aflige o homem – o que é toda escrita literária e é também por esse fio do sentido que o uso do texto literário deveria se guiar.

O que reside no uso do texto literário é muito mais que uma análise, é uma releitura daquilo que subjaz o processo de criação artística – sem objetivos de salvar a mãe da forca, de descobrir a cura para o mal da civilização ou de construir edifícios de última geração. As maravalhas do dizer presas no silêncio rumorejante da palavra, a presença de ecos no interregno das formas, o fio de Ariadne que alinhava as obras literárias, tudo são envolvidos por essa película protetora que devemos quebrar, mas sem fender. É o ato de fissura que tem se tornado gesto corriqueiro quando se busca imprimir certos moldes engessadores ou extrair certas conclusões no comum desconcerto do texto literário. No desconcerto habita a arte, a arte não se usa por moldes.

Cito um exemplo palpável aos que pareço muito abstrato com tais reflexões: a aliança entre literatura e linguística – para ficar em dois campos estritamente da linguagem. Tal aliança tem sido desfeita a certo tempo e agora está posta em trabalhos de ressurreição. Entendo que talvez até se consiga alguma coisa. Entretanto, chamar a essa união de estudo literário é uma infelicidade. Há diferenças e muitas entre o uso que fazemos do texto literário e do que faz a linguística.

É o estado bruto de ciência externado pela linguística, elemento que ela conseguiu ao longo de sua constituição, o que fere diretamente a essência de arte no texto literário. No estudo da literatura o bruto da ciência é anestesiado pela sensibilidade do leitor, num processo que se dá, não externamente, mas no interior do leitor e do tecido do texto, para daí a feitura de seu diálogo com o texto.

O uso do texto literário deve ser dotado da lucidez de que ele é, por natureza, arte; arte que coloca no coração da frase as veredas toscas da vida humana, ligadas à História e à imaginação criadora. Atrelada a essência da arte, seus sentidos, múltiplos, inapreensíveis em sua totalidade, são como águas de um rio. E esse outros elementos que a ela se ligam, são como árvores que ficam às bordas e são essenciais à sua existência. Do que a mim me parece o uso deve ser como andar à procura de, ou melhor, à cata daquilo que está na superfície, no curso da corrente; o desvelamento dessa mistura de real e imaginário que se inter-seccionam na memória, re-inventa a vida para dar em literatura, tudo atravessado por uma individualidade que é coletiva, feita e refeita a todo tempo, constituindo os esboços da história das mentalidades, das correntes, crenças, hábitos, modos de pensar/ser/agir, escondidos nas frinchas do aparente incaptável, da falta presente.

Releio a epígrafe deste texto. É por causa da incapacidade humana de apreender o inapreensível, de não ver a presença na falta, é “por causa destas faltas e outras semelhantes é que pomos a inventar histórias de tesouros, ou já as encontramos inventadas, sinal de muita necessidade antiga, não é só de hoje”. Um uso que não pondera essa possibilidade, já que “há avisos que devem ser entendidos com muita atenção, ao mais pequeno engano desfaz-se o ouro em pez e a prata em fumo ou fica um homem ceguinho, têm-se visto casos”.

* Texto publicado no caderno Domingo do Jornal De Fato, em 14 de março de 2010, p.14.


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