A viagem do elefante, de José Saramago
Por Pedro Fernandes
O caráter fabulador das viagens, reais ou imaginárias, já foi posto à prova pelo escritor português. Cito para efeito as rotas alteradas de Blimunda a vagar nove anos por territórios da Ibéria à busca de seu amado Baltasar em Memorial do convento, as rotas sem rumos de uma barcaça gigante de pedra a vazar o Atlântico e de seus habitantes em A jangada de pedra, as rotas de uma viagem marítima em torno de si em O conto da ilha desconhecida, as rotas condenadas e coordenadas por deus a Caim, no seu recente romance homônimo, ou ainda, a viagem real empreitada por um guia turístico por Portugal em Viagem a Portugal.
Como todo grande escritor, em Saramago a viagem é tema recorrente em sua escrita, até o aflorar na doce frase que epigrafa esse seu mais recente livro, "Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam". A viagem do elefante vem mostrar que tudo na vida, inclusive ela própria é peremptória, é território movediço, placa em movimento, rota cambiante.
Decidido a narrar um fato histórico, Saramago volta à forma da primeira fase, como adere alguns críticos, aquela que lhe deu mote à ficção - que é a do denso e rico trabalho de construção da literatura pelos interstícios da rede de uma memória histórica; o próprio citado Memorial do convento e Levantado do chão, que são os romances que o projetam enquanto ficcionista e são dessa fase primeira são alguns dos títulos que mantém esse ponto de interseção ficção-História-ficção.
Entretanto, esse voltar ao princípio, podemos assim dizer, vem com o mesmo critério de aproximação para uma operação de subversão ao substrato oficial, dando vez e voz àqueles seres outros postos à margem: no caso desse romance, por ironia, os da margem se manifestam na figura de um robusto elefante. Foi em 1551, que Dom João III oferta como presente de casamento um elefante ao então arquiduque austríaco Maximiliano II, recém-casado com a filha do imperador Carlos V.
Se o narrador se volta para a vida do elefante, não é a história da corte portuguesa e/ou austríaca o que leitor encontra no romance. A rota de um elefante batizado pela alcunha de Salomão e de um seu cornaca, o indiano Subhro assumem uma dimensão tão humanizadora como serve de mote para que Saramago destile toda sua veia irônica em torno das instituições que cercam esse acontecimento: seja a política, a religião, a cultura, a história e a própria narrativa.
Mais que isso: a viagem de Salomão é uma poética viagem. De uma rica plasticidade a preencher todos os sentidos dos leitores. Tamanha imagética servirá, certamente, para que não tarde algum ilustrador se aventurar por representar esse itinerário por outra via que não a da palavra.
A viagem do elefante reaviva outra posição da escrita saramaguiana. Sempre lida como amargurada (leitura com a qual discordo) e com humor irônico, aqui, o traço do humor ganha em muitas passagens quase o tom da galhofa. Isto é, desperta nesse romance aquela ponta que sempre tenho observado na sua literatura: a doce risada contida das situações, por vezes, estapafúrdias do homem. Isso já tinha sido avivado com a aparição de As intermitências da morte, por exemplo, mas reafirmo, está já desde Manual de pintura e caligrafia. De certo modo, soltar mais desse riso serve aos incrédulos que ainda insistem chamar a literatura do escritor português de pesada. Não; Saramago é leve. Leve e doce como deve ser toda postura crítica. Que não se confunda esses epítetos com flexibilidade. Isso não. Saramago é firme!
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