Franz Kafka
Por Pedro Fernandes
Franz Kafka, verão de 1906, quando se formou em Direito. Arquivo Klaus Wagenbach. |
Os leitores iniciantes devem saber do nome de Franz Kafka através de duas obras das mais conhecidas da literatura: A metamorfose e O processo. São dois títulos indispensáveis a todo aquele que busca conhecer a obra desse escritor e integram, pela forma e pelo tema, o rol dos obras-mestras do século XX. Basta dizer que, sensível ao seu tempo, o autor tcheco terá sido um dos primeiros a compreender pela literatura a angústia do homem moderno, sentido pelo qual todo leitor cumprirá na travessia dessas e de outras de suas obras.
Se a questão poderia ser apenas um vulto no seu tempo, não há nada mais marcante no agora que esse sentimento tratado de maneira diversa pela psicologia, pela filosofia e diversos outros campos do saber. Dizemos isso, pensando, sobretudo, no amplo estudo da corrente existencialista cujo tema designado por Jean-Paul Sartre de náusea constitui-se para a psicologia no mal-estar do homem moderno. Também Kafka soube modelar pela literatura outras extensões ou mesmo as bases desse e outros males do homem moderno: a obscuridade do mundo, esse misto de sonho-realidade, ou de sonhar acordado, ou ainda a confusão entre realidade e virtualidade que traduz a vida como um grande mal-entendido ou pesadelo que custa a acabar ou mesmo constante.
Para Jorge Luis Borges, “o destino de Kafka foi transmutar as circunstâncias e as agonias em fábulas. Redigiu sórdidos pesadelos em estilo límpido”. O escritor argentino escreveu que a obra kafkiana é regida por duas obsessões. “A subordinação é a primeira das duas; o infinito, a segunda. Em quase todas suas ficções existem hierarquias e essas hierarquias são infinitas”.
A percepção aguçada de Kafka, entretanto, não é um caso de profetismo - que isso, afinal, não é tarefa de sua literatura (e de nenhuma outra!), mas revela-o um sujeito de percepção sensível e aguçada sobre os meandros das relações de seu tempo. Milan Kundera em seu ensaio “Em algum lugar do passado”, de A arte do romance, esclarece que: “Kafka não profetizou. Ele apenas viu aquilo que estava 'em algum lugar do passado'. Ele não sabia que sua visão era também uma previsão. Ele não tinha a intenção de desmascarar um sistema social. Ele pôs em evidência os mecanismos que conhecia pela prática íntima e microssocial do homem, não duvidando que a evolução posterior da História os poria em movimento em seu grande palco”.
Essa mente brilhante e inquieta (talvez brilhante porque inquieta) nasceu no dia 3 de julho de 1883, na cidade de Praga, na República Tcheca. Formou-se em Direito, em 1906; conhecia, portanto, toda a esfera da burocracia e do claustro do escritório - elementos que viriam povoar obras suas como as já citadas O processo e A metamorfose - principalmente pelo ofício que exercerá a partir de então, não como advogado, mas como funcionário de uma seguradora.
A metamorfose, seu livro mais conhecido foi finalizado em 1912, mas só publicado três anos adiante. E O processo - fragmentos do que seria uma obra mais acabada - publicado, como grande parte da sua obra, postumamente, em 1925. É sabido que antes de morrer, Kafka não tinha certeza de que havia escrito coisa que valesse a pena ser publicada (sabia mesmo do seu fracasso) e deu ordens, como teria feito Virgílio com a Eneida, para que o amigo também escritor e editor Max Brod se desfizesse de todos os papéis, e isso, como sabemos, não aconteceu.
A metamorfose, seu livro mais conhecido foi finalizado em 1912, mas só publicado três anos adiante. E O processo - fragmentos do que seria uma obra mais acabada - publicado, como grande parte da sua obra, postumamente, em 1925. É sabido que antes de morrer, Kafka não tinha certeza de que havia escrito coisa que valesse a pena ser publicada (sabia mesmo do seu fracasso) e deu ordens, como teria feito Virgílio com a Eneida, para que o amigo também escritor e editor Max Brod se desfizesse de todos os papéis, e isso, como sabemos, não aconteceu.
Traição por uma parte, atitude coerente por outra (e esse julgamento pode ser coisa mesquinha de leitor kafkiano); Brod deve ter percebido certa qualidade intrínseca à obra do amigo e não quis deixá-la perecer no esquecimento; publicou seus papéis e, quando no estouro da Segunda Guerra Mundial, salvou todo arquivo levando-o para Tel Aviv, em Israel.
Além do faro editorial, pode ter sido motivado pela ambição de inscrever seu nome na história - certa coisa derivada do sonho do próprio Kafka toda vez que tocava no assunto viver de literatura. Sim, sempre que falarmos de qualquer obra publicada postumamente pelo escritor tcheco logo o feito de Brod vem à tona e com ele o seu nome marcado como presença indelével ao lado do nome do escritor.
Pode ter sido ainda mera ambição financeira de editor. Mas, enfim, ainda o fato é que sem a atitude de Max Brod conheceríamos pouco da obra de Kafka; O processo, por exemplo, seria mais uma dessas obras perdidas, que entram no escuro do tempo para nunca mais regressar.
Das que chegaram até nós, existiram ainda os contos de Contemplação, também editados quando era vivo, e romances como O castelo, O desaparecido ou Amerika, e novelas como Um médico rural, Um artista da fome (que deixou revisado), A construção, O veredicto, Na colônia penal, O foguista e um conjunto de textos esparsos, parte dele reunido na edição brasileira intitulada Narrativas do espólio.
Fora do âmbito literário, ficaram centenas de correspondências (como a singular Carta ao pai, escrita e jamais enviada, que é um acerto de contas com as difíceis circunstâncias que mediaram a relação entre pai e filho), os diários e os desenhos.
Tuberculoso, a vida de Franz Kafka foi outra depois de 1917; das estadias entre Praga e Berlim, findaria sua vida em sanatórios. Morreu em 1º de junho de 1924, em Kierling (Viena). Milena Jesenská, que foi uma das suas namoradas, escreveu que “Todos os seus livros pintam o horror dos segredos, dos mal-entendidos, da culpa da pessoa inocente. Era um artista e um homem cuja consciência, tão ansiosa, conseguia ouvir inclusive onde outros, surdos, se sentiam seguros”.
“A obra de Kafka é uma elipse cujos focos, bem afastados um do outro, são definidos de um lado pela tradição mística (que é antes de tudo a experiência da tradição), de outro pela experiência do habitante moderno da grande cidade” - escreveu Walter Benjamin.
Com Franz Kafka, observou Elias Canetti, “chegou o mundo algo novo, um sentimento mais preciso de seu caráter discutível e problemático que, no entanto, não está relacionado ao ódio mas ao respeito pela vida. A conjunção dessas duas atitudes mentais - respeito à vida e o sentimento do caráter discutível e problemático do mundo - é algo único, e quando o vivemos não podemos prescindir dele.”
Max Brod decretou certa vez que o século XX ainda seria conhecido como o “século de Kafka”. Esse século definido por Brod ainda continua porque Kafka alcançou mais que isso: construiu um espírito e um modo de ser kafkianos. Por isso, como afirmou Canetti, é impossível experimentá-lo sem se tornar um homem diferente.
Ligações a esta post
>>> Leia comentários acerca dos livros O processo e A metamorfose, aqui.
>>> E aqui algo acerca dos seus aforismos.
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